Importante marco para a
regulação da saúde suplementar, a Lei 9.656/1998, conhecida como
“Lei dos Planos de Saúde”, completou 21 anos em junho e exige
diferentes reflexões por parte de toda cadeia: reguladores,
gestores, tomadores de decisão, beneficiários, Poder Judiciário e
demais agentes envolvidos no setor. Entender, reconhecer e refletir
suas especificidades é fundamental para pensar ferramentas
necessárias para garantir a sua perenidade. Antes, portanto, faz-se
necessário um breve panorama.
Nos anos 1920 houve a
implementação das primeiras caixas de aposentadoria e pensões aos
funcionários ferroviários e a criação dos Ministérios da Saúde e
Educação. Nos anos 1960 as empresas passaram a empregar recursos
próprios e de seus colaboradores para o financiamento da
assistência em saúde, dando nascimento às primeiras medicinas de
grupo e cooperativas médicas, que comercializavam planos por rede
própria ou credenciada.
O setor é caracterizado pela
atuação de empresas de medicina de grupo e odontologias,
cooperativas médicas e odontológicas, entidades de autogestão,
filantropias, administradoras de benefícios e seguradoras
especializadas em saúde, estas criadas em 2001 para oferecer
reembolso, rede referenciada e vedadas de possuir rede
própria.
Denominadas operadoras de
planos de saúde, essas empresas surgiram das dificuldades
encontradas pela saúde pública em cobrir as demandas e de novas
empresas nacionais e multinacionais que se instalavam no Brasil e
buscavam modos de se assegurar atendimento médico de qualidade aos
profissionais.
É nesse contexto que médicos
começaram a se organizar em grupos e formaram o conceito das
cooperativas com contratos individuais, familiares e coletivos; a
modalidade de autogestão, em que — como o próprio nome diz — as
próprias empresas criavam planos exclusivos mediante o
credenciamento de médicos, hospitais, demais profissionais e
serviços de saúde para a prestação da assistência aos seus
colaboradores. Criou-se também o modelo de seguro saúde, semelhante
ao que ocorre no mercado de seguros em geral, em que se pagava uma
quantia, denominada prêmio, e a empresa arcava com os custos
financeiros dos tratamentos.
Se para o setor de seguros
havia o Decreto-Lei 73, de 1966, que estabeleceu suas regras de
funcionamento, os demais modelos eram ainda carentes de
regulamentação específica. Embora os contratos ditassem suas
próprias regras para o conjunto de procedimentos, cobertura e
outras características, a falta de legislação específica deixava
contratantes e contratados em evidente risco e insegurança
jurídicos.
Claro que a Constituição
Federal de 1988 garantiu, além do direito à saúde de todos os
brasileiros por meio das atribuições do Estado, a oferta de
serviços de saúde privada também sob a regulação da União. No
entanto, a definição de regras só viria 10 anos mais tarde, com a
promulgação da Lei 9.656, em 1998.
Nesse período, a insegurança
jurídica resultava do fato de que quem contratava um plano de saúde
não tinha uma legislação específica para se proteger — sendo
notável a quantidade de ações nos Procons, sobretudo após a edição
do Código de Defesa do Consumidor, em 1990. A promulgação da Lei
dos Planos de Saúde, portanto, buscou trazer garantias para
contratados e contratantes, mas trouxe novas incertezas e
assimetrias em toda a cadeia.
E já se inicia controversa
com a distinção entre os planos antigos e os novos, firmados a
partir de 1º de janeiro de 1999, em diferentes perspectivas, como a
do rol de procedimentos, que viria a ser estipulado pela Agência
Nacional de Saúde Suplementar (ANS), criada no ano 2000. Diferentes
regras estabelecidas pelo órgão regulador, como as de reajuste, não
são aplicáveis aos planos antigos.
Outras questões são de grande
importância para entendermos o segmento e refletirmos com
celeridade sobre seu futuro e sustentabilidade. Um deles é,
certamente, o mutualismo, preceito que o sustenta sob uma base
coletiva. Nesse conceito — que tem como princípio a solidariedade
de diferentes pessoas com o mesmo interesse (assistência médica)
que contribuem para um fundo comum administrado pelas operadoras de
planos. Logo, a contraprestação pecuniária — a mensalidade paga por
empresas ou indivíduos — fica em um fundo comum e é utilizada para
garantir a assistência.
A diluição dos riscos e
valores entre as faixas etárias permite o pagamento de uma
mensalidade mais acessível a todos, já que possibilita que
indivíduos com menor taxa de utilização contribuam com
beneficiários que necessitam realizar mais procedimentos — o
denominado Pacto Intergeracional. Ele determina que pessoas mais
jovens, em tese mais saudáveis, paguem um pouco a mais do que seria
indicado para o seu perfil de utilização da assistência, para que
os mais idosos possam pagar um pouco menos. Isso acontece porque,
com a idade avançada, aumenta-se a incidência de diferentes doenças
e necessidade de maior uso dos serviços, gerando um gasto maior. A
legislação, portanto, divide grupos de beneficiários por faixa
etária e, com base no Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), não
permite reajustes que sirvam de instrumento discriminatório do
idoso em razão da idade, impondo critérios de aplicação dos
reajustes de forma proporcional entre as faixas etárias.
Administrando esses recursos,
a operadora garante a realização dos procedimentos e remunera toda
a cadeia de saúde, como prestadores de serviços e fornecedores de
materiais médicos. Contudo, o sistema de mutualismo é ameaçado pelo
elevado grau de judicialização da saúde. Vale lembrar que recente
pesquisa realizada pelo Insper a pedido do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ) mostrou que a judicialização da saúde cresceu 130%
nos 10 anos compreendidos entre 2008 e 2017 enquanto o volume total
de ações no país avançou 50% no mesmo período.
O mesmo levantamento indicou
que, mesmo após mais de duas décadas da regulamentação do setor, a
Justiça ainda tende a beneficiar somente o indivíduo, mesmo
desconsiderando os contratos firmados — o que impacta diretamente
na sustentabilidade econômico-financeira do segmento. Ou seja, o
interesse do indivíduo, muitas vezes, é colocado acima do bem-estar
coletivo.
Ao longo destas mais de duas
décadas, ficou claro que um dos problemas é exatamente a assimetria
de informações e dados — que está em diferentes aspectos do setor.
Ela vai desde a falta de transparência nas relações ou na
fiscalização dos agentes da cadeia por parte do órgão regulador —
já que a lei dispõe que a Agência deve fiscalizar e impor as
devidas sanções tão apenas às operadoras — até a falta de
precificação adequadas para diferentes produtos, entre vários
outros aspectos. O resultado já é mais do que conhecido:
aproximadamente 19% dos gastos assistenciais da saúde suplementar
no país são consumidos por desperdícios e fraudes (foram quase R$
28 bilhões só em 2017, segundo projeção do IESS – Instituto de
Estudos de Saúde Suplementar).
Claro que a criação da Lei
9.656/98 foi primordial para a estruturação e desenvolvimento da
saúde suplementar brasileira. Seu impacto deve, sim, ser celebrado
e reconhecido. Não se deve, contudo, perder de vista que esses 21
anos deram mais clareza sobre os desafios do segmento e a
necessidade urgente de revisão e atualização do marco
regulatório.
O nosso objetivo e agenda não
poderiam ser outros: estimular o debate, fomentar a criação de
mecanismos, políticas e instrumentos para a melhoria do segmento,
ampliar a transparência para avançar em qualidade e
competitividade, buscar mudanças de mentalidade e perfil dos
diversos envolvidos na cadeia.