Por Antonio Penteado Mendonça, O Estado de S. Paulo
Só agora a pandemia do coronavírus começa sua escalada rumo ao topo. De março para cá, o vírus estava testando o terreno, analisando a força do adversário, escolhendo as melhores estradas.
Nestes dias, ele mudou de postura, decidiu que já sabe o suficiente para uma escalada segura, auxiliado pela parte da população que insiste em ir para as ruas, tomar cerveja, jogar conversa fora, cair no funk nos pancadões das madrugadas.
Depois de chegar na marca das mil mortes por dia, o coronavírus se convenceu que o Brasil é fácil e que aqui ele fará coisas que até na Itália e na Espanha ele não conseguiu fazer. A expectativa é que pelo menos se aproxime dos Estados Unidos, se é que não vai ultrapassar as marcas norteamericanas. Afinal, ele tem tudo para isso. Inclusive um relaxamento do isolamento social, consentido e apoiado por Prefeituras e Estados, exatamente no rumo que o presidente da República vem dizendo que deve ser desde o começo da nossa tragédia.
Mais de mil mortes por dia e contando. Análises matemáticas indicam que em breve atingiremos as mil e quinhentas mortes a cada vinte e quatro horas e alguns especialistas, principalmente médicos dentro dos hospitais que combatem a pandemia, dizem que não é difícil atingirmos duas mil mortes por dia.
É um quadro sinistro e que fica mais complicado quando se sabe que a rede pública está colapsando e que os hospitais que atendem ao SUS não têm a menor condição de atender o número de pessoas infectadas. Em vários estados já há fila de espera para internação em UTI e os que ainda têm vagas se aproximam perigosamente do limite de sua capacidade.
Até agosto estoura. Sim, até agosto, porque não há no horizonte o menor sinal de que as coisas podem melhorar. Não podem e não vão. Nós não fizemos nada, ou praticamente nada, em nível nacional, para reduzir a velocidade de propagação do coronavírus. Ao contrário, a falta de preocupação de parte da população é apavorante e mostra que viver ou morrer, pelo menos até agora, é indiferente para milhões de brasileiros, que não estão nem aí para os números dramáticos, em subida consistente, que nos são apresentados todos os dias.
Com a pandemia se espalhando interior a dentro, os próximos dois meses serão muito tristes porque o número de pessoas mortas deve subir significativamente e a capacidade de atendimento dos hospitais deve diminuir quase que na mesma proporção.
Como não poderia deixar de ser, nesta hora o bom e velho político brasileiro mostra sua cara e a demagogia barata enche os noticiários com manchetes do gênero “O Senado aprova requisição de leitos da inciativa privada para atender pacientes do SUS”.
Será que é correto? Nas últimas décadas, todos os Poderes e todas as instâncias de governo pouco se lixaram para a saúde pública. Tanto é verdade que, desde a década de 1990, a tabela do SUS não foi reajustada e hoje tem uma defasagem de mais de 40% em relação ao custo real das operações dos hospitais que atendem a rede pública. Além disso, o número de hospitais públicos com obras paradas, incompletos ou desativados atinge proporções assustadoras. Para não falar nos escândalos de superfaturamento.
Ao longo deste tempo, os planos de saúde privados e os hospitais particulares fizeram investimentos de bilhões de reais para atender seu público. Atualmente, o Brasil tem alguns hospitais que não devem nada aos melhores do mundo.
Aqui surge uma questão dramática que precisa ser analisada friamente, diante da realidade introduzida pela pandemia. Será que é justo o cidadão que contribui mensalmente para ser atendido pela rede privada ficar sem leito de UTI quando contrai a covid-19 porque o Estado não consegue cumprir sua função constitucional de garantir atendimento médico-hospitalar para a população? Será que é justo a rede hospitalar privada ser sub-remunerada porque tem que ceder seus leitos a preço de SUS?
São perguntas duras que merecem uma reflexão: será que é justo quem faz a lição de casa ter que pagar por um Estado omisso e milhares de pessoas irresponsáveis?