Lúcio Anacleto e Joel Garcia são sócios de serviços financeiros da KPMG Brasil
Embora os holofotes estejam direcionados para a liquidez do sistema bancário com diversas ações governamentais e de reguladores, uma questão que vem ganhando destaque nos Estados Unidos, Europa e Ásia Pacífico é a solvência do setor de seguros. Um tópico que envolve reguladores, analistas, companhias de seguros, a degradação de rating do setor pelas agências é um movimento natural perante a crise e, consequente, ao aumento da sinistralidade em diversos ramos de seguros.
Solvência refere-se à capacidade de uma empresa cumprir compromissos financeiros de longo prazo e é também o índice que mede até que ponto os ativos cobrem compromissos para pagamentos futuros (passivos). Para grande parte das seguradoras, os índices de solvência, provavelmente, diminuirão como resultado dos mercados financeiros voláteis que afetam os ativos e passivos dessas empresas. Mas apenas o fato de os índices de solvência diminuírem não significa que haja um problema no setor de seguros.
Embora não se perceba indicações, o risco de insolvência no setor certamente não é zero e essa situação traz alguns desafios para o primeiro plano. Existem vários pontos críticos que levam à insolvência. A primeira análise é sobre o nível de capitalização das companhias que, no Brasil, é avaliado pelo Índice de cobertura do capital mínimo requerido, ou seja, suficiência do patrimônio líquido ajustado. De acordo com as publicações recentes, até o início da pandemia tínhamos uma situação confortável.
Uma pergunta atual é a seguinte: qual o impacto da volatilidade dos mercados financeiros nos índices de solvência? No momento, uma discussão à parte dos impactos no risco de subscrição (mortalidade, morbidade, catástrofes, prêmios e provisões). E embora as seguradoras de vida, e não vida de curto prazo, possuam carteiras de ativos significativas, as seguradoras exclusivamente de vida e de previdência são particularmente vulneráveis. Isso acontece em função das garantias de remuneração mínima de juros e atualização monetária existente nos passivos e da maior duração de carteiras de ativos para atender às responsabilidades de duração mais longa dos passivos de seguros.
Alguns dos principais fatores de redução dos índices de solvência no lado do ativo são os seguintes: baixas taxas de juros, downgrade de rating de títulos, risco de crédito e volatilidade do mercado de ações. Companhias que possuem estratégia de hedge e ou derivativos poderão se beneficiar de compensações nesses períodos mais extremos de volatilidade, ainda que a opção de hedge possa ser cara.
Os movimentos nas taxas de juros, em particular, geram mudanças nas taxas de desconto de passivos. Essas reduções levam a aumentos nas avaliações dos passivos e a um prolongamento do período de duração. A extensão em que os aumentos no passivo excedem as alterações nos valores dos ativos gera uma redução na situação de solvência.
Em tempos de eventos extremos, as seguradoras deveriam evitar reações bruscas. Mover demais as carteiras de investimentos pode levar ao reconhecimento imediato de perdas, seguidas pelo risco de reinvestimento em um ambiente de taxa de juros reduzida. O monitoramento de estratégias e as mitigações de gerenciamento de ativos e passivos são práticas recomendáveis. Outra possibilidade é os cálculos de capital ou de solvência sofrerem alterações para métodos mais sofisticados ou complexos. As companhias podem fazer essas alterações por conta própria, por exemplo, nos modelos internos.
No Brasil, o índice de solvência, no ano passado, foi de aproximadamente 200% com o segmento de seguros totalizando R$ 70 bilhões em patrimônio líquido ajustado frente ao capital regulatório de R$ 34 bilhões. Embora o setor de seguros em geral seja considerado como bem capitalizado por esse motivo, pode haver uma nova realidade em termos de níveis de capital a longo prazo, impactada pela redução do apetite a risco dos acionistas e ou ajustes propostos pelos reguladores.
Os reguladores ao redor do mundo têm reagido de forma fluída e focado em fazer concessões às seguradoras para apoiar o setor em tempos difíceis. As concessões concentram-se em dar mais tempo para preparar relatórios e divulgações formais, reduzindo solicitações e investigações não essenciais e fornecendo algum alívio em países selecionados em torno dos próprios cálculos de capital ou atrasando os testes de estresse. A Autoridade Europeia de Seguros e Pensões Ocupacionais (EIOPA), por exemplo, chegou a comentar, em março deste ano, em meio à pandemia da covid-19 que testes recentes de estresse mostraram que o setor é bem capitalizado e capaz de reter choques graves, mas plausíveis, no sistema. Embora estejam ocorrendo concessões, os reguladores aumentaram pontos de contato e solicitações em duas áreas: resiliência dos negócios e atualizações em tempo real nos cálculos de solvência, até semanalmente ou mesmo diariamente em alguns casos.
Finalmente, à medida em que a pandemia da covid-19 continua, criando desafio para a sociedade, empresas e governos, haverá mais pressões externas sobre as seguradoras, como na situação dos seguros de interrupção de negócios (DNOs), renegociação de cláusulas, mudanças nos modelos de negócios, inadimplência, fraudes, dentre outros. Há muitas lições aprendidas e mais ainda estão por vir, mas a solvência das seguradoras agora e no futuro é essencial para a estabilidade do sistema financeiro. Os aspectos de governança, gestão de riscos e comunicação com o mercado, seja por meio da divulgação de indicadores financeiros e contábeis, seja através da comunicação constante com a base de clientes sobre assuntos relevantes que afetam a proteção, são essenciais no momento.