A aposentada Vera Gonçalves,
de 59 anos, é um bom exemplo dos abusos das empresas de planos de
saúde coletivos no Brasil – que têm os serviços e atendimentos
regulados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), mas têm
ainda uma liberdade maior: a de fazer reajustes com base em
cálculos não auditados pelo órgão regulador. A agência regula
apenas os aumentos de planos individuais.
Vera tinha um plano
individual da SulAmérica e usava normalmente a rede credenciada. Em
um determinado momento, ela recebeu um comunicado informando que
parte da rede credenciada não fazia mais parte do plano dela.
Então, ela procurou um corretor que sugeriu, em 2005, que ela
migrasse para um plano coletivo pela entidade de funcionários
públicos a qual é filiada.
“Eu não tinha outra saída
porque a rede credenciada praticamente não existia mais no meu
plano individual. Então, mudei do plano executivo individual para o
plano executivo coletivo. Era o mesmo plano, mas no coletivo eu
conseguia ser atendida em toda a rede credenciada. Uma situação
absurda, desigual.”
Desde que migrou para o
plano coletivo, os reajustes começaram a aparecer, por volta de 15%
a 20%, mas ela ainda conseguia arcar com as mensalidades. Agora,
quando completou 59 anos, o valor do plano de Vera saltou
106%, passando de R$ 2.055,71 (em janeiro) para R$ 4.253,30
(fevereiro). “Fica inviável pagar. Me sinto refém das
empresas. Não posso ficar sem plano médico porque me preocupo com a
minha saúde. Mas também não consigo contratar um plano individual,
que é mais barato e deveria me atender. A gente fica esperando que
alguém olhe por nós, mas parece uma máfia.”
Procurada, a empresa
comentou o caso por meio de nota: "A SulAmérica esclarece que
os reajustes aplicados a todos os seus planos estão em conformidade
com as regras estabelecidas pela Agência Nacional de Saúde
Suplementar. Vale ressaltar que incidiram na mensalidade o reajuste
anual [inflação] e a mudança de faixa etária, que está expressa nas
condições gerais do seguro, recebidas pela beneficiária no ato da
contratação do plano e registrada na ANS."
De acordo com dados da ANS, o
índice de reajuste anual para planos individuais ou familiares foi
de 9,65% em 2014, no ano anterior o percentual foi de 9,04%. A
ANS informa que não é possível verificar qual foi o reajuste médio
dos planos coletivos porque são feitos com base em acordos com o
grupo para o qual prestam serviços e os contratos variam
muito. Segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Defesa
do Consumidor (Idec), em 2014, enquanto os coletivos tiveram um
aumento médio de 18%, com casos extremos de reajustes de até
90%.
Segundo a advogada Renata Vilhena
Silva, especialista em direito à saúde do escritório Vilhena Silva
Advogados, esse tipo de reajuste de mensalidade verificada no caso
de Vera ocorre como forma de burlar o estatuto do idoso, que não
permite mais o reajuste por idade após os 60 anos.
“É comum vermos as operadoras
pararem de vender planos individuais. O mercado arruma uma forma de
escapar do rigor da lei e as operadoras prejudicam a sociedade
criando mecanismos que não são controlados pela ANS, que fiscaliza
de maneira ineficiente”, afirma a advogada.
A Federação Nacional de Saúde
Suplementar (FenaSaúde), entidade que representa grupos de
operadoras de planos privados de assistência à saúde, explica os
aumentos das mensalidades: “Os reajustes dos planos individuais
ficam acima da inflação porque nos últimos dez anos, no Brasil, as
despesas assistenciais per capita já acumulam alta de 133,7%,
enquanto a variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor
Amplo [IPCA] chega a 61,1%. Neste período, o reajuste autorizado
pela Agência Nacional de Saúde Suplementar [ANS] para os planos
individuais regulados pela Lei 9.656/98 foi de 95,9%. Logo, a
correção aplicada às mensalidades nem sequer vem cobrindo os gastos
assistenciais, embora supere os demais indicadores do
período.”
Troca de plano individual
por coletivo
Outro abuso identificado no caso de
Vera é que ela, por questões práticas, foi convencida pelo corretor
– em um cenário de constantes negativas da rede credenciada – de
que o melhor seria migrar para o plano coletivo "porque seria
melhor atendida", alegou o profissional à época.
"Os planos de saúde individuais e
familiares estão cada vez mais escassos no mercado de saúde
suplementar e causando dor de cabeça para seus beneficiários. Rede
credenciada cada vez menor e reajustes cada vez mais altos são a
receita para que as operadoras atinjam o seu objetivo: migrar
usuários para os planos coletivos, que possuem uma regulamentação
menos rígida da ANS. E quem mais sofre com isso, claro, é a
terceira idade", diz a advogada Renata.
De acordo com dados da ANS,
atualmente 19,4% dos planos existentes no País são individuais (são
9,89 milhões de pessoas com planos de saúde individuais entre os 51
milhões de beneficiários de planos de saúde). Em 2013, a quantidade
de pessoas com planos de saúde individuais era de 9,85 milhões
(19,85%) em um universo de 49,6 milhões de beneficiários.
Por meio de nota, a ANS
esclarece que a legislação de saúde suplementar não determina a
forma de comercialização dos planos de saúde. “As operadoras de
planos de saúde têm liberdade para atuar nos segmentos coletivo ou
individual, sem obrigação de vender os dois tipos, pois a
legislação não determina a forma de comercialização dos planos de
saúde. No entanto, caso a operadora tenha planos individuais
registrados na ANS, não pode negar a venda aos consumidores.”
A Agência destaca que planos
individuais e planos coletivos são regulados pela ANS e devem
cumprir as exigências do órgão regulador com relação à assistência
prestada e à cobertura obrigatória. O percentual máximo de
reajuste anual a ser aplicado aos planos individuais é definido
pela ANS. O cálculo é baseado na média dos percentuais
aplicados aos planos coletivos com mais de 30 beneficiários.
Os planos coletivos são reajustados
anualmente, de acordo com as condições previstas nos contratos,
mediante livre negociação entre as partes, tendo por base a
variação dos custos médico-hospitalares do período. Segundo a
FenaSaúde, o objetivo é manter o equilíbrio da carteira.
O comportamento das empresas de
contratos coletivos junto a seus segurados chamou a atenção
do Tribunal de Contas da União (TCU), que realiza auditoria para analisar se os
reajustes de planos de saúde estão acontecendo de forma adequada. O
órgão está usando como fonte advogados especialistas em direito à
Saúde, além de analisar a jurisprudência recente; na Justiça, os processos têm crescido.
Atendimento falho de
empresas onera sistema público
A saúde privada e a saúde pública
no Brasil têm caminhos que se encontram, muitas vezes, com perdas
para os cofres públicos e para o consumidor. Quando um usuário do
setor de saúde suplementar não consegue atendimento, vai ao Sistema
Único de Saúde (SUS), mesmo que pague pelo serviço privado. Em
resumo, paga ao sistema privado e usa o público.
Entre janeiro e novembro de 2014, o
Ministério da Saúde recebeu R$ 335,74 milhões de ressarcimento ao
SUS por conta desses atendimentos. O valor é 82% maior do
arrecadado em 2013, quando foram obtidos R$ 183,2 milhões. Nos
últimos quatro anos, (2011 a novembro de 2014), o valor do
ressarcimento chegou a R$ 673,66 milhões.
Em relatório sobre o setor, o
Tribunal de Contas da União aponta que “o ressarcimento ao SUS
existe em razão da incapacidade, por parte das operadoras de planos
de saúde, de manter uma rede conveniada adequada – o que obriga os
beneficiários a recorrerem à rede pública".