O Estado gasta indevidamente
dinheiro com a comparticipação de medicamentos prescritos na
sequência de acidentes e que deviam ser pagos pelas seguradoras,
alertou uma jurista da área.
Ana Andrade, jurista há mais de 20
anos a trabalhar no setor da saúde, alerta para a despesa que o
Estado tem vindo a pagar ao longo de anos com a comparticipação de
medicamentos que devia ser suportada por terceiros, como as
seguradoras, quando os remédios são prescritos na sequência de
acidentes e são comprados pelos utentes na farmácia.
“A ação meritória do Ministério da
Saúde na redução de custos, designadamente com medicamentos, não
teve ainda em conta os encargos que o Serviço Nacional de Saúde
(SNS) vem pagando indevidamente relativos a medicamentos prescritos
a doentes cujos problemas de saúde decorrem de acidentes da
responsabilidade de terceiros”, defende a jurista, que é também
diretora de serviços no SNS.
A jurista foi pela primeira vez
confrontada com esta situação durante um episódio de acidente que
se passou com a sua filha enquanto praticava desporto num clube
privado com seguro, e que motivou uma ida à urgência e consequente
prescrição de medicamentos. A despesa hospitalar foi suportada pela
seguradora, como manda a lei, mas os remédios foram em parte pagos
pelo SNS, uma vez que são comparticipados pelo Estado.
Isto, mesmo apesar de a instituição
a que pertencia o médico prescritor saber qual a seguradora e o
número da apólice. Este episódio levou-a a fazer uma investigação
sobre o assunto, tendo concluído que esta é uma prática
generalizada e nem os próprios médicos têm consciência da situação.
Aliás, a jurista vinca que em “nenhum diploma legal ou
regulamentar, nem nenhum procedimento hospitalar,” se alertam os
médicos para a necessidade de se escrever a receita com o nome do
terceiro responsável.
A agência Lusa contactou a Ordem
dos Médicos e a Ordem dos Médicos Dentistas que confirmaram esta
situação.
Já a Administração Central do
Sistema de Saúde (ACSS) responde que o sistema de prescrição
possibilita a identificação de uma entidade financeira responsável,
mas quando questionada em pormenor, remeteu para os Serviços
Partilhados do Ministério da Saúde. Segundo a ACSS, existe uma
plataforma que permite faturar às seguradoras quando são estas as
entidades financeira responsáveis pelos cuidados de saúde prestados
ao utente. Quanto aos medicamentos, se a prescrição for associada à
entidade financeira responsável, os remédios “não terão direito a
comparticipação e serão pagos pelo utente”.
Os Serviços Partilhados do
Ministério da Saúde (SPMS) explicam também que “os medicamentos
prescritos por médicos dos hospitais e aviados em farmácias normais
comunitárias são pagos na totalidade pelo utente”. “Para receber o
reembolso, o utente deverá apresentar a fatura à sua seguradora”,
indica a SPMS.
A jurista Ana Andrade lembra, no
entanto, que o terceiro responsável nem sempre é conhecido no
momento do acidente e da prestação de cuidados e consequente
prescrição de medicamentos. Além disso, nas receitas usadas no SNS
nunca figura o nome de outro terceiro responsável que não seja o
próprio SNS ou subsistemas como a ADSE. Mesmo quando se conhece o
terceiro responsável.
Aliás, várias farmácias contactadas
pela Lusa confirmaram que nas receitas médicas aparece, na
“entidade responsável”, sempre o SNS ou algum dos subsistemas de
saúde e nunca o nome de uma seguradora. “O SNS paga o que as
seguradoras ou outros terceiros responsáveis deveriam pagar, sem
possibilidade de retorno quando se conhecer o terceiro
responsável”, refere a jurista, que já alertou o Ministério da
Saúde diversas vezes para esta questão.
Contactada pela Lusa, a SPMS não
esclareceu quantas receitas passadas em nome de seguradoras ou de
terceiros responsáveis foram emitidas nos últimos anos.
A solução, defende a jurista, pode
passar por duas vias, sendo uma delas a ligação do sistema
informático da prescrição de medicamentos com o sistema informático
dos hospitais para que nas receitas médicas apareça o nome do
terceiro responsável quando ele já é conhecido.
Outra das soluções é a criação de
uma “marca” em todas as receitas passadas a utentes que se saiba
serem vítimas de acidentes, mas em que ainda se não conhece o
responsável, para que, quando for conhecido, o SNS lhes possa
faturar os valores que pagou.
Procedimentos idênticos poderiam
ser também aplicados a consultas e meios auxiliares de diagnóstico
e terapêutica prescritos após a entrada da vítima dum acidente nos
serviços de urgência.
A jurista argumenta que muitas
dessas consultas, análises, ou radiografias não ficam “ligadas” ao
episódio clínico inicial, e, quando mais tarde se passa a conhecer
o responsável pelo acidente, já não há possibilidade de aqueles
custos serem então faturados a esses responsáveis.