Com serviços públicos gratuitos cada vez mais concorridos e restritivos, contrastando com a crise econômica que fez decrescer o acesso aos planos de saúde, as empresas ditas “clínicas populares” ou de “cartões de desconto” ganharam substancial espaço no cenário assistencial brasileiro, em especial nos centros urbanos maiores. Esta expansão veio revestida de toda espécie de abusos, a começar com interação ou dependência com estabelecimentos comerciais e divulgação publicitária visando a cooptação de clientela, refletindo em insatisfação crescente de pacientes e em denúncias éticas na esfera dos Conselhos de Medicina.
O Conselho Federal de Medicina editou a Resolução 2170/2017 com o objetivo de dar ordenamento a esta modalidade de serviços médicos ambulatoriais e, consequentemente, mais segurança e qualidade na atenção à saúde da população. A norma foi publicada em 24 de janeiro para vigência em 90 dias, a partir de 23 de abril, com o que tais clínicas serão obrigadas a ter registro no CRM da jurisdição onde atuam, sendo exigido para isso corpo clínico composto de profissionais comprovadamente habilitados para o exercício da medicina no Brasil. A indicação de diretor técnico responsável é requisito indispensável para o funcionamento da empresa.
Ressalte-se que essas clínicas, a exemplo das empresas médicas em geral, continuarão impedidas de oferecer qualquer promoção relacionada ao fornecimento de cartões de descontos, fidelidade ou similares. Essa prática é proibida desde 2010, quando o CFM entendeu que a adesão de médicos às regras de promoções desse tipo deixa o sigilo do paciente vulnerável.
O principal atrativo dessas empresas deve ser a qualidade, e não o preço ou a remuneração. O Código de Ética proíbe o médico de exercer a profissão de forma mercantilista ou explorar o trabalho de outro colega, isoladamente ou em equipe, na condição de proprietário, sócio, dirigente ou gestor de empresas ou instituições prestadoras de serviços médicos. Do mesmo modo, fica vedado à clínica praticar anúncios publicitários de qualquer natureza com indicação de preços de consultas e formas de pagamentos que caracterizem a prática da concorrência desleal, comércio e captação de clientela.
Legalmente, todos os serviços médicos direcionados ao atendimento e recuperação da saúde da população devem ser fiscalizados pelo Conselho Regional de Medicina. Essa fiscalização tem por finalidade a verificação das condições do atendimento prestado aos doentes, tais como: a qualificação legal e técnica dos médicos atendentes; a disponibilização de material minimamente indispensável para o exame físico completo ao qual o doente tem direito; a confecção, pelo médico, de um prontuário individualizado para cada doente; espaço físico do consultório onde seja preservada a intimidade do doente; a localização do consultório, onde não haja contiguidade com farmácia, drogaria, ótica, serviços de estética e beleza ou qualquer outro tipo de comércio que induza a procura, direcionada pelo profissional ao doente, para consumo decorrente da consulta efetuada.
A maioria das empresas não consegue seu registro no CRM por não ter em sua constituição um médico responsável pelas normas de funcionalidade, o diretor técnico, desobedecendo à legislação vigente no país. Assim, a fiscalização fica impedida de atuar e deixam de ser exigidos fatores indispensáveis para o perfeito atendimento que a população espera e merece.
As clínicas que oferecem atendimento médico ambulatorial (conhecido como “consulta médica em consultório”), há de se reconhecer, evitam que seus usuários tenham de recorrer às Unidades Básicas de Saúde (UBS), onde a procura é grande e, consequentemente, a espera para atendimento é longa, trazendo transtornos e insatisfações aos doentes e aos médicos atendentes. No entanto, tais empresas não disponibilizam atendimentos em casos de urgência ou emergência e seus usuários, diante de patologias consideradas mais graves, certamente terão de se socorrer nas Unidades de Pronto Atendimento públicas (UPAs).
Leia também: “Crimes” contra pacientes, planos de saúde e o SUS (artigo de Sandra Franco, publicado em 3 de agosto de 2017)
Leia também: Parceria entre SUS e planos, solução para a crise na saúde (artigo de Cadri Massuda, publicado em 24 de março de 2017)
Outra agravante refere-se à ausência de responsabilidade desses estabelecimentos nas situações em que o doente necessite de internamento hospitalar. Doenças que venham a requerer hospitalização, tanto para tratamento clínico quanto para cirurgias, obrigarão o usuário a se dirigir a uma USB ou a uma UPA do serviço público. E, destes locais, será direcionado a hospitais conveniados ao Sistema Único de Saúde (SUS) após concessão de vaga hospitalar pela Central de Leitos. Sem nenhum privilégio, reitera-se, apesar de algumas clínicas propagarem pseudoconvênio.
É necessário destacar que as empresas não esclarecem aos seus usuários o tipo de relação que mantêm com os médicos a quem direcionarão os atendimentos, omitindo a não corresponsabilização da pessoa jurídica por eventuais questionamentos ou insatisfações no que diz respeito aos atendimentos. As situações adversas, se surgirem, serão de única e exclusiva responsabilidade do médico atendente.
Assim sendo, é preciso deixar o alerta à população para que, antes de aderir a esses planos de saúde, analisem pormenorizadamente todos os termos do contrato de prestação de serviços médicos ambulatoriais, em especial os aspectos referentes aos seus direitos enquanto usuários, e se a empresa tem o indispensável registro junto ao Conselho Regional de Medicina do Paraná. Este, como órgão disciplinador das atividades médicas em defesa da melhor assistência à saúde, estará sempre receptivo a queixas e esclarecimentos aos usuários a respeito do atendimento recebido, apurando desvios éticos e, quando necessário, direcionando denúncias ao Ministério Público, Vigilância Sanitária e Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Luiz Ernesto Pujol é pediatra e secretário-geral do Conselho Regional de Medicina do Paraná.