No artigo "Atraso crônico" (30/4), nesta Folha, Claudio Lottenberg defendeu um "novo sistema de saúde para o Brasil", no qual o Estado teria "a responsabilidade de criar os elementos facilitadores para atrair ainda mais a iniciativa privada".
A ideia de maior participação do setor privado na definição de políticas públicas de saúde, que circula em vários documentos e eventos, é uma platitude enganosa. O que executivos e entidades de planos de saúde, hospitais particulares, medicina diagnóstica, organizações sociais, indústria farmacêutica e de equipamentos querem é mais recursos públicos para seus negócios privados.
A noção ambígua de privado e público na saúde e a longeva e íntima relação entre empresários do setor, políticos e gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) obscurecem um debate que deve ser esclarecido.
Segundo a Constituição, a saúde é livre à iniciativa privada, que realiza convênios, vende insumos e serviços para complementar o SUS, ou se organiza para atender clientelas de planos de saúde e particulares.
Há estabelecimentos privados que prestam serviços ao SUS e aos planos de saúde; organizações privadas que administram unidades públicas; incentivos públicos para estruturas que não atendem o SUS.
Quem tem plano de saúde, quase 30% da população, utiliza frequentemente o SUS em emergência, tratamentos complexos, remédios caros, vacinações, campanhas de prevenção, atendimentos negados pela assistência suplementar ou sempre que o trabalhador perde o benefício do plano juntamente com o emprego. Além disso, cidadãos pagam do próprio bolso por medicamentos, exames e consultas.
Num sistema desigual e segmentado, tudo junto e misturado, sem financiamento público suficiente, a histórica aproximação de governos com o segmento privado pouco contribuiu para viabilizar o SUS constitucional, de qualidade e para todos.
O ex-presidente José Sarney ouviu o setor e ampliou o abatimento das despesas privadas com saúde no IR. Seus sucessores Collor e Itamar perdoaram dívidas de hospitais privados com o extinto Inamps. Fernando Henrique escancarou BNDES e Caixa para investimentos na rede particular de saúde. Lula agradou a grandes hospitais de São Paulo ao flexibilizar títulos de filantropia com isenções milionárias sem devidas contrapartidas ao SUS.
No governo Dilma, foi aprovada a abertura irrestrita do capital estrangeiro à saúde privada, e os planos de saúde tomaram a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS); obtiveram aumentos de mensalidade bem acima da inflação e diminuição de multas; deixaram de vender planos individuais e lucraram com planos de adesão, que fogem das regras de reajuste e rescisão. Delações da Lava Jato prometem expor algumas dessas transações.
Agora, com Temer, empresas da saúde comemoram mais empréstimos, refinanciamento das dívidas fiscais (Refis) e a promessa da liberação dos planos "populares", de menor preço, coberturas reduzidas e franquias, e da aprovação da nova lei dos planos de saúde, escrita pelas próprias operadoras.
O setor privado não é inimigo do SUS, pois dele sempre dependeu. Mas, ao contrário de outros países, não admite aqui a racionalidade do sistema universal nem se compromete com a superação dos determinantes e riscos de adoecer e morrer no Brasil. Apresenta-se como o novo e o moderno, mas no fundo escreve a crônica do atraso ao solicitar, em ano eleitoral, mais "elementos facilitadores" que resultarão em um SUS menor, para pobres, reduzido a uma rede de serviços para quem não pode pagar pelo setor privado subsidiado com recursos públicos.
Mário Scheffer
Professor da Faculdade de Medicina da USP, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e membro do Conselho Diretor do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec)