Quando Andressa Duvique, de 21
anos, moradora de Guaianases, zona leste da capital paulista,
confessou a uma conhecida da sua igreja que estava com depressão,
ouviu da mulher que a doença era uma questão de fé. "Ela perguntou
pra mim 'Ah, mas você está orando?', como se isso fosse um problema
espiritual, mas isso é um problema emocional. Por isso falam que é
frescura", conta a jovem evangélica.
A depressão afeta 11,5 milhões de
brasileiros (ou quase 6% da população), segundo dados de 2015 da
Organização Mundial da Saúde (OMS). Andressa encontrou ajuda para
lidar com a doença em sessões de terapia gratuitas, oferecidas por
uma psicóloga. "Depois que descobri que não tinha passado no
vestibular, por bem pouco, as coisas pioraram e eu vi que precisava
de ajuda. No princípio, foi por causa de vestibular, mas depois
fazendo terapia eu descobri que era uma questão emocional minha,
que eu precisava cuidar", diz.
Existem poucos estudos nacionais
relacionando depressão e classe social. De acordo com uma pesquisa
do Ibope, realizada sob encomenda da Associação Brasileira de
Familiares, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos (Abrata),
de dez anos atrás, as classes C e D são as mais vulneráveis à
depressão - a pesquisa identificou sintomas depressivos em 25% das
pessoas desse estrato social, contra 15% das classes A e B.
Essa conclusão é amparada por dados
americanos que apontam que pessoas vivendo na pobreza têm o dobro
de chances de estarem deprimidas. Esses dados ainda fazem sentido
hoje? Teng Chei Tung, psiquiatra membro do Conselho Científico da
Abrata, acredita que "as pessoas pobres sofrem mais com a
depressão, pelo menos por causa da falta de acesso a tratamentos
adequados".
Para Teng, dados mais recentes a
respeito seriam "importantíssimos para buscar políticas públicas
mais efetivas (no combate à depressão)".
'Você está aplaudindo, eu estou me
matando'
Em 2017, o rapper baiano Diogo
Moncorvo, o Baco Exu do Blues, tinha tudo para estar vivendo o
melhor momento de sua vida. O músico acumulava milhões de
visualizações em seus clipes no YouTube. Seu álbum, Esú, foi
elogiado pela crítica e lançou os holofotes para o rap criado fora
do eixo Rio-São Paulo.
Mas uma das faixas do álbum já
mostrava que Baco estava sofrendo. "O álcool está me matando/Minha
raiva está me matando/Sua expectativa em mim está me matando/Homem
não chora/Foda-se, eu tô chorando!/ (...) /Isso é um pedido de
socorro/Você está aplaudindo/Eu tô me matando".
Baco estava com depressão.
"Eu acho que o negro, rico ou
periférico, é condicionado à depressão devido à história de vida
dele sabe? Porque ele sempre é deixado de lado, sofre preconceito.
Isso tudo abala o seu bem-estar, sua autoconfiança, suas vontades.
Se você deixar isso te afetar, você entra numa psicose maluca e não
consegue sair dela", afirma o rapper Baco, que mora em Salvador e
cujo público, na Bahia, é composto principalmente por jovens de
periferia.
Em sua tese de mestrado, defendida na
Universidade Estadual de Feira de Santana (BA), a pesquisadora
americana Jenny Rose Smolen propõe uma revisão na relação entre
raça e transtornos mentais no Brasil.
Analisando 14 pesquisas sobre
transtornos mentais, ela chegou à conclusão de que não brancos têm
mais tendência a sofrer com doenças como depressão. Segundo Smolen,
esse problema não está ligado a fatores genéticos.
Uma pista para explicar a questão pode
ser encontrada em outro estudo, da Universidade do Texas, que,
analisando pessoas negras dos EUA, concluiu que sofrer
discriminação diária impacta na saúde mental das pessoas.
Existe também o impacto bioquímico,
diz a especialista em psicologia social e escritora Gabriela
Moura.
"Quando você se vê diante de um
perigo, o seu nível de cortisol aumenta. Só que o nosso corpo foi
feito para que isso aconteça num período de cinco, dez minutos, que
é o tempo de você entrar em estado de alerta e fugir do perigo. Em
uma situação de preconceito, de violência social, a gente se vê
nessa situação o tempo todo, então, o indivíduo passa 24 horas em
estado de alerta, não sabendo se ele vai ser bem recebido, não
sabendo se ele vai sofrer violência policial, violência urbana, e
isso a médio ou longo prazo causa uma extrema fadiga no corpo e na
mente."
Para completar, há indicativos de que
negros tenham acesso mais restrito a tratamentos médicos e a planos
de saúde privados, o que força a maioria a recorrer ao sistema
público.
Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde
(PNS), divulgada em 2015 e abrangendo os setores público e privado,
74,8% dos brancos tinham consultado um médico nos últimos 12 meses,
contra 69,5% dos pretos e 67,8% dos pardos. Só 21,6% dos pretos e
18,7% dos pardos tinham plano de saúde, contra 37,9% dos
brancos.
Resta à imensa maioria o atendimento
gratuito do SUS.
"A periferia está exposta a uma
vulnerabilidade social, né? Devido a todo um histórico de
escravidão, de uma dificuldade maior (em relação) às possibilidades
de estudo, de trabalho formal, de violência policial, isso está
presente", diz à reportagem um psicólogo de uma Unidade Básica de
Saúde (UBS), localizada na periferia de São Paulo, que pediu
anonimato. "Até nos equipamentos de saúde, às vezes, existe uma
dificuldade de encontrar um acolhimento, um reconhecimento na
questão do racismo."
Gabriela Moura conclui: "Para a gente
conseguir alcançar essas camadas a gente tem que repensar como esse
atendimento está sendo feito, a ponto de essas pessoas não evitarem
e não negligenciarem a sua própria saúde."
Limitações no atendimento
A psiquiatra Laura Helena Andrade,
coordenadora do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica, do Hospital
das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, foi uma das
responsáveis pela São Paulo Megacity Mental Health Survey, uma
ampla pesquisa sobre saúde mental realizada na Grande São Paulo e
divulgada em 2012.
Andrade explica que uma pesquisa
dessas (realizada entre 2005 e 2007), com mais de 5 mil
entrevistados em sessões ao vivo, com até quatro horas de
entrevista, é complexa e leva muito tempo para ser realizada,
tabulada e ter seus resultados divulgados. Esse seria um dos
motivos da falta de dados mais recentes sobre o tema.
Andrade vê com ressalvas as conclusões
da pesquisa do Ibope de que a pobreza seria determinante para uma
maior tendência à depressão e aponta que casos de transtornos
mentais são encontrados em todas as classes sociais.
Mesmo assim, dados levantados pela São
Paulo Megacity apontaram alguns efeitos da pobreza na saúde mental
do paulistano, como uma maior incidência de transtornos de
ansiedade em pessoas com baixa escolaridade e de transtornos
psiquiátricos relacionados ao abuso de drogas (incluindo álcool) em
pessoas que moram em vizinhanças com maior nível de privação
social.
A exposição a situações de violência
também aparece como um gatilho para transtornos mentais nos dados
da pesquisa.
De acordo com a OMS, entre 2005 e
2015, o número de pacientes com depressão aumentou 18,4%.
Apesar da existência de tratamentos,
poucas pessoas - menos de 10% dos casos - recebem ajuda médica.
Demora para ser atendido pelo
SUS
Lucia Figueiredo tem 59 anos e é
moradora do Jardim Brasil, zona norte de São Paulo. Ela diz que sua
primeira experiência com a depressão foi há 26 anos, quando sofreu
um aborto espontâneo, mas o problema acabou se intensificando
quando teve hipotireoidismo e uma série de mortes ocorreram em sua
família.
"Não tocava mais piano, não
participava mais das coisas que sempre me faziam bem. E três meses
depois que perdi meu irmão e cunhado, perdi minha mãe. (Aí se)
intensificaram os sintomas. Então, tive que buscar ajuda médica",
conta. No entanto, levou nove meses para conseguir tratamento na
rede pública de São Paulo.
"O problema do SUS é (que) a partir do
momento que a pessoa entra no sistema para uma consulta, até
conseguir chegar a um psiquiatra, demora bastante", diz Lucia. "O
problema não é o profissional, nem o atendimento psicológico, mas a
distância de quando se detecta o problema até chegar na
possibilidade de ser atendido."
Kelly Pereira, de 22 anos, sofre de
depressão desde a adolescência, e sua experiência com o SUS não foi
positiva. Além da dificuldade de diagnóstico, ela penou com a
distribuição irregular de antidepressivos.
"Se não houver uma boa adaptação com o
remédio, não tem o que fazer, geralmente só tem uma única opção",
diz a moradora da periferia de Santo André, Grande São Paulo.
Em nota, a Prefeitura de Santo André
declarou que a "Relação Municipal de Medicamentos (REMUME) não
dispõe de apenas uma opção para tratamento - na verdade estão
listadas 6 opções (Sertralina 50 mg, Fluoxetina 20 mg,
Amitriptilina 25 mg, Imipramina 25 mg, Clomipramina 25 mg e
Nortriptilina 25 MG), sempre pensando em alternativas que atendam
as prescrições pelo princípio ativo do medicamento".
A REMUME segue a lista da Relação
Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), que define os
medicamentos disponíveis no Sistema Único de Saúde e é elaborada
pelo Ministério da Saúde.
Mas essas opções são suficientes? Para
o psiquiatra Alexandre Valverde, pós-graduado pela Universidade de
Paris-1 Panthéon-Sorbonne, que trabalhou por anos no CAPS Itapeva,
em São Paulo, e também com crianças em situação de vulnerabilidade
no Projeto Quixote, a resposta é "não".
"Infelizmente (no SUS) não dispomos de
toda a gama de medicações do mercado. Pode-se fazer muita coisa já
com essas (seis) opções de antidepressivos, mas muitas vezes ao
custo de efeitos colaterais e uma resposta insuficiente. A questão
é que em bairros periféricos, faltam até esses medicamentos da
listagem do SUS."
O psicólogo da UBS consultado pela
reportagem concorda com Valverde e lembra que já viu faltarem em
unidades do CAPS, na cidade de São Paulo, antipsicóticos, que são
medicamentos usados em casos de esquizofrenia, e sem os quais o
paciente pode ter surtos de alucinações.
Segundo a Prefeitura de Santo André,
os seis tipos de antidepressivos listados acima não estão em falta
nos CAPS e nos Centros de Especialidades da cidade.
Alexandre Valverde levanta, ainda, a
questão da eficácia dos genéricos que são disponibilizados no SUS.
"Alguns deles têm um efeito muito abaixo do esperado em relação à
medicação de referência. Tínhamos de prescrever, por vezes, doses
três a quatro vezes maiores que as habituais para conseguirmos a
resposta terapêutica."
'Frescura'
O tabu em cima das doenças
psicológicas acontece em todas as classes sociais, mas na periferia
percebe-se uma falta de conhecimento do assunto.
"Existe um clichê na mente das pessoas
que quem tem doença psicológica não é são, não tem equilíbrio. Por
isso demorei tanto para assumir que estava doente" diz o rapper
baiano Baco.
"Isso é um sofrimento muito
individualizado e muitas vezes estigmatizado pela falta de
informação e de circulação sobre aquilo", agrega o psicólogo da
UBS.
A visão da depressão como "frescura",
como algo ao qual o pobre não tem direito, foi muito citada pelos
entrevistados ouvidos pela reportagem.
"Na periferia, as pessoas estão na
correria o tempo todo, buscando sobreviver, tendo que trabalhar
muitas horas por dia, passar muitas horas no transporte público.
Acaba que, às vezes, ela precisa escolher onde ela vai depositar a
energia e o tempo dela, se é buscando tratamento para uma doença
que é pouco falada, pouco explorada ou se é buscando uma
sobrevivência ganhando um salário irrisório, mas que pelo menos
garanta uma subsistência", diz Gabriela Moura.
Para Kelly, cujo pai também sofreu de
depressão, uma pessoa pobre não poderia se dar ao luxo da
doença.
"Vi meu pai se matar todos os dias
para sustentar nossa família, de segunda a segunda, saindo às
quatro da manhã e chegando à noite. Sem folga, sem férias, sem
nada. Meus vizinhos passando fome, muitos com vários filhos sem ter
condições de criar, morando em barracos de madeira praticamente
dentro do córrego, eu olhava pra eles e pensava: eles não têm
depressão, eles não podem ficar doentes, senão morrem de fome. Não
podem se dar ao luxo de não levantar da cama."
* O Centro de Valorização da
Vida (CVV) dá apoio emocional e preventivo ao suicídio. Se você
está em busca de ajuda, ligue para 188 (número gratuito) ou acesse
www.cvv.org.br.