No último mês de março tivemos uma
verdadeira demonstração sobre a loucura coletiva que se vive no
Brasil.
Tudo começou no Congresso, quando,
em 1998, aprovaram o projeto de lei que alterava a pena do art.
273, § 1º-B, I, do Código Penal, para impor pena de reclusão de 10
a 15 anos a quem importa, vende ou distribui medicamento "sem
registro, quando exigível, no órgão de vigilância sanitária
competente".
O próximo passo de "genialidade"
foi o então Presidente da República e chefe do Executivo sancionar
o projeto, transformando-o em lei.
Com isso, em suma, importar ou
vender medicamento não registrado na ANVISA rende, pela lei, pena
de reclusão de 10 a 15 anos. Para se ter uma ideia comparativa do
absurdo que isso representa, o homicídio qualificado tem pena
mínima de 12 anos.
Em outras palavras, alguém que, em
abstrato, meramente importe medicamento não registrado na ANVISA
poderia receber pena superior àquela que um homicida grave
receberia por suas ações.
Como qualquer coisa que existe,
existiu ou existirá no Brasil, foi levado ao exame do Judiciário,
tendo o STF a palavra final. E o que ficou definido?
Através do Tema nº 1.003, firmou-se
a tese:
É inconstitucional a aplicação
do preceito secundário do artigo 273 do Código Penal, com a redação
dada pela Lei 9.677/1998 - reclusão de 10 a 15 anos - à hipótese
prevista no seu parágrafo 1º-B, inciso I, que versa sobre a
importação de medicamento sem registro no órgão de vigilância
sanitária. Para esta situação específica, fica repristinado o
preceito secundário do artigo 273, na redação originária - reclusão
de um a três anos e multa.
Ou seja, o STF não só arrogou a si
próprio o direito de revogar as leis, mas, também, de recriá-las,
impondo inclusive as penas em abstrato.
E os meandros que levaram à decisão
foram, talvez, a maior demonstração de loucura institucional que já
se viu.
Dos 11 ministros, 5 sugeriram
soluções diferentes para a questão, sendo que nenhuma delas
importava em reconhecer que a atribuição de definir crimes e penas
é do Legislativo, e não do Judiciário.
É o tipo de situação rara, em que
todos, do começo ao fim, estão errados.
Em primeiro lugar, a atribuição do
Legislativo de pena de 10 a 15 anos para esse tipo de situação é um
verdadeiro absurdo. Para se ter ideia, essa é a mesma pena de quem,
por exemplo, falsifica medicamentos. Não há, de fato, nenhuma
razoabilidade ou proporcionalidade.
Em segundo lugar, errou o
Executivo, por sancionar um absurdo desses.
Em terceiro, errou o Judiciário,
por dar solução absolutamente impossível em um Estado de Direito,
praticando revogação de leis e com seus ministros discutindo qual
deveria ser a pena proporcional, assunto que somente pode ser
discutido no âmbito do Legislativo.
Claro que ninguém vai se opor, de
forma geral, à decisão do STF, porque resolveu um caso
verdadeiramente aberrante e que não causa necessariamente mal à
população. Mas isso, tenham certeza, foi apenas um ensaio.
Logo teremos criações ou revogações
de crimes pelo STF em matérias mais sensíveis – e se ancorarão
nesse precedente em que ninguém reclamou.
Desse julgamento disparatado – para
não dizer arbitrário – somente dois pontos talvez tenham se
salvado, ainda que parcialmente.
O Ministro Fachin, apesar de
concordar com a desproporcionalidade da pena, entendeu que era
simples caso de absolver o réu, e não de alterar a lei, posto que,
na hipótese, não haveria possibilidade de se comprovar a ocorrência
de prejuízo a outrem em decorrência dessas condutas.
E eu não poderia concordar mais com
esse aspecto. O Direito Penal é regido pelos Princípios da
Intervenção Mínima, segundo o qual somente fatos destacados em lei
devem merecer a atenção criminal, e da Ofensividade, segundo o qual
somente fatos que ocasionem lesão a bens jurídicos tutelados pela
lei podem ocasionar persecução penal.
Em abstrato, qualquer importação de
medicamento sem registro na ANVISA pode ser considerada como
ofensiva à saúde pública?
Ora, ainda mais em tempos de
pandemia, em que se notou certa letargia de nosso órgão sanitário
em relação a seus pares nos EUA e Europa, simplesmente não faz
sentido. A regra seria pela simples ausência de ofensividade da
conduta, servindo a condenação apenas para casos realmente
graves.
E, justamente nesse aspecto, o voto
do Ministro Lewandowski merece atenção: foi o único a observar que,
em que pese seja uma previsão de pena desmedida para a maioria das
situações, há casos em que a punição é razoável ou proporcional ao
delito.
Muitos anos atrás, quando eu ainda
era estagiário do Ministério Público Federal, me lembro de ter
atuado no caso de um sujeito que importou uma carga enorme de
anabolizantes não registrados na ANVISA. Ele era instrutor de
academia e tudo sugeria que os anabolizantes seriam usados de
maneira completamente indevida, sem indicação médica, causando
risco objetivo para a saúde pública.
Ora, nesse caso o agente praticou
crime grave e deliberado. Realmente não consigo distanciar a
conduta, em termos práticos, de algo similar ao tráfico de
drogas.
Por isso temos diante de nós um
caso que certamente será lembrado, mas que seria para esquecer. Uma
sequência de erros, arbitrariedades e absurdos praticados pelos
três poderes, sendo a conduta do Judiciário, de longe, a mais
grave.
No entanto, isso é apenas o Brasil
atual.