José Seripieri Filho, o Júnior: "O
assunto do 'non-compete' é passado. Minha meta é voltar a
revolucionar a Qualicorp"
"A cabeça do fundador é diferente
da cabeça de um funcionário executivo. Um não é melhor que o outro,
são diferentes. O fundador olha para a empresa como um filho. É uma
relação passional. Você não faz conta de quanto ganha versus
quantas horas por dia trabalha."
Assim, o fundador da Qualicorp,
José Seripieri Filho, mais conhecido como Júnior, explica por que,
depois de ter vendido o controle da Qualicorp, continuou por mais
oito anos a dirigir a companhia sem nunca ter pleiteado um pacote
de remuneração. As ações da Qualicorp derreteram em 1º de outubro
de 2018, quando veio a público a história de que o conselho de
administração estava lhe oferecendo um polpudo cheque para que não
deixasse a companhia. Soube-se, então, que sequer havia um acordo
de 'non-compete' caso ele deixasse a empresa. A proposta que o
conselho lhe fazia era de R$ 150 milhões para que permanecesse por,
no mínimo, seis anos e não abrisse negócios concorrentes. O
pagamento era também uma compensação pelos mais de 20 anos de
companhia nos quais não recebera remuneração variável, somente o
pró-labore.
As ações da Qualicorp caíram
30% num pregão, não só pelos valores que seriam desembolsados, mas
principalmente pelo risco que o mercado viu na saída do fundador.
Se, por um lado, a decisão sobre a oferta ao CEO era questionada
por não ter sido submetida aos demais acionistas, por outro lado, o
mercado considerou que, se quisesse, Júnior poderia abrir uma
concorrente, num negócio que ele inventara e entendia mais que
qualquer outro no mercado, e conhecendo a carteira de clientes que
ele mesmo construíra.
Concordou em permanecer na
companhia, investiu os R$ 150 milhões que recebera em ações da
Qualicorp e para mostrar seu comprometimento assinou um 'lock-up'
(contrato que proíbe que um volume de papéis seja vendido por tempo
determinado) no mesmo montante dos R$ 150 milhões. Na bolsa, os
papéis se recuperaram. A cotação já superou R$ 15,87, valor que
estava antes da crise. Na sexta-feira, fechou em R$
19,50.
Há três semanas, em 8 de
maio, os acionistas aprovaram, por unanimidade, todos os termos do
acordo, incluindo a nova remuneração do presidente e diretores. Nem
mesmo a XP, segunda maior acionista, que liderou as reclamações
sobre o pacote que o conselho oferecera ao CEO, votou
contra.
Em uma entrevista de mais de
duas horas ao Valor, Júnior comentou o episódio:
"Eu estava completando 50 anos de idade, com quatro filhos. Me dei
conta de que estava com um percentual pequeno, 15%. Aí eu comecei a
questionar se ficava ou não. Acho que essas crises existenciais
acontecem, como num casamento. E aí, nesse momento, o conselho
entendeu por bem fazer uma proposta. Para mim o assunto do
'non-compete' é passado. Hoje a minha grande meta é voltar a
revolucionar a Qualicorp."
Mas o episódio mostrou que a
empresa tem ainda o desafio de seguir sem depender da figura do seu
fundador. Em poucas companhias o fundador se confunde tanto com o
negócio que criou. Foi Júnior quem inventou o modelo de plano de
saúde por adesão, que nasceu da busca de uma solução para os
obstáculos que encontrou na sua vida de corretor.
Desde o IPO (oferta inicial
de ações), em 2011, a empresa passou de uma receita líquida de R$
676 milhões para R$ 1,9 bilhão e de um prejuízo de R$ 33,6 milhões
para um lucro líquido de R$ 397 milhões em 2018.
Quando começou a carreira
como corretor, em 1986, aos 18 anos de idade, num mundo ainda sem
internet, quem comprava plano de saúde fazia questão de ter
imediatamente em mãos o livro da rede credenciada, que representava
ao usuário a segurança de encontrar um médico quando precisasse.
Mas faltavam livros. Por isso, conta, acordava às 4h30, ia de São
Paulo ao Rio em sua Parati 1983 e voltava com o carro lotado de
livros da Golden Cross. "Eu era muito menino, tinha cara de Júnior.
As pessoas tinham pena de mim e tinha uma diretora que, por pena,
separava caixas de livro para mim."
Júnior também era muito gago,
o que fazia vários clientes desistirem da compra antes mesmo de
terminar a frase. "Deus me fez baixinho e gago, então a
concorrência sempre foi desleal comigo, em qualquer situação. Eu ia
perder sempre. O mercado na época era de plano individual, eu era
mais um que vendia esse produto".
Por conta da gagueira, não
conseguia vender por telefone, tinha que fazer o porta a porta. Por
14 anos percorreu o centro de São Paulo. Subia até o último andar
dos prédios e vinha descendo, tocando a campainha em cada porta.
Primeiro no quadrilátero entre Avenida Ipiranga, São Luís, Xavier
de Toledo e São João. Até que um dia chegou à avenida Ipiranga 919,
onde ficava a Associação dos Delegados de Polícia. Conseguiu um
contato, com a ajuda do pai, que tinha sido delegado, e negociou um
contrato com a associação para oferecer o plano de saúde para os
delegados. Mas o diretor da entidade pediu uma carta da operadora,
na época a Golden Cross, isentando a associação de responsabilidade
pela quitação da fatura. "Não entendi nada do que ele me falou,
mas, como bom vendedor, falei ok. Quando contei pro meu gerente,
ele falou que era absolutamente impossível, se ele era um
contratante empresarial tinha que quitar a fatura. Aí eu fui no
dono da Golden Cross [Milton Afonso]. Ele concordou, acho que
porque não entendeu do que se tratava."
Porém, a legislação não
permitia que a somatória dos descontos em folha - o plano era
abatido do salário - excedesse 50% dos rendimentos brutos. "Eles
processavam o desconto na folha de pagamento, mas a Prodesp
devolvia uma listagem com quem tinha insuficiência de saldo." Até o
dia em que uma fatura altíssima chegou para a associação dos
delegados. "Fui proibido de vender os planos e tive que procurar os
delegados, que eram inadimplentes de boa fé, para pegar um cheque,
muitas vezes nos plantões da madrugada. Nunca ninguém se negou a
pagar, mas tinha problemas como o delegado que dizia que não ia
pagar porque a mãe dele teve uma guia negada ou coisas assim. Aí eu
tinha que pegar a guia lá na Golden Cross, resolver a autorização,
voltar com a guia e então recebia o cheque". Na prática,
intuitivamente, ele começou a fazer o pós-venda e, assim, nasceu a
essência do negócio Qualicorp, ao fazer venda do plano e também o
atendimento depois. Algo que, segundo Júnior, outras corretoras não
tinham interesse em fazer. "O vendedor gosta de vender, receber e
ir embora."
Mas quando a Golden Cross
quebrou, em 1997, Júnior diz que "colapsou com ela". "Eu fui o
último corretor da Golden Cross, fiel até o último instante. Então
tive que abrir uma corretora, eu e um amigo inventamos o nome Grupo
Qualicorp. "Eu tinha que fazer a cobrança e o atendimento, então
tinha que me estruturar, precisava do banco de dados porque todo
dia tinha que incluir ou tirar familiar, mudar faixa etária, tem
que calcular tudo isso. As associações não queriam o risco de
bancar inadimplência. No final, eu aprendi a fazer essa história,
que não tem nada a ver com venda, é um expertise nosso: a cobrança
e o atendimento, uma coisa intrinsecamente ligada à
outra."
A Qualicorp praticamente não
teve concorrência e cresceu porque o negócio de atender associações
não interessou a ninguém no primeiro momento. Os planos
empresariais já estavam em expansão e era melhor atender empresas
do que uma associação, onde todo associado é "dono" e as condições
de reajustes são mais difíceis de ser negociadas. E tampouco foram
procurados os clientes individuais que a Golden Cross deixara sem
atendimento. Junior foi atender esse cliente individual, mas por
meio do coletivo por adesão.
As seguradoras também não se
interessavam pelos clientes individuais. "Recebi 'não' de todas e
chegou um 'não' da SulAmérica, de um diretor que assinava Henrique
Berardinelli. Uma noite estava no escritório, no desespero peguei o
telefone e liguei para a SulAmérica. Atendeu alguém muito ríspido e
achei que estava falando com o vigilante noturno. Perguntei como
fazia para falar no outro dia com o diretor técnico Berardinelli.
'Quem quer falar com ele?'. Disse que era um corretor. O cara
respondeu: 'É ele'. Meio gago, fiquei gago inteiro. Ele falou: '
Vem aqui amanhã, às sete horas da manhã'.
A SulAmérica não fazia aquele
tipo de contrato com associações. "Expliquei, expliquei e ele pegou
um papel e falou 'Pede tudo o que você quer, é a única vez que você
vai ter essa chance'. Fui falando: quero trazer o contrato da
associação dos delegados, quero isenção de carência para quem
migrar da Golden Cross, quero tal preço, quero comissão... E ele
foi anotando numa metade do papel. E disse: 'Agora vou te dizer o
que quero'. Para cada coisa que pedi ele escreveu na frente, na
outra metade do papel, uma condicionante. 'Se você entregar tudo o
que estou pedindo eu te entrego tudo o que você pediu.' Trabalhei
de graça, no sétimo mês recebi a comissão."
"Viramos uma espécie de RH
profissional, um RH da associação." A Qualicorp criou um call
center porque tanto o usuário como as operadoras nos acionavam, em
vez de resolverem a pendência. Passamos a fazer o relacionamento
com o consumidor. "Começamos a entrar nessas frestas do sistema,
atendendo todo tipo de demanda do usuário, do médico especializado
à carteirinha vencida". Mas para as seguradoras não era fácil
negociar contratos com cada associação porque tem um viés político
numa entidade de classe na defesa de seus associados. "Chegou um
momento em que as seguradoras disseram: 'Queremos ter um
contratante e você se vira com cada uma das associações'. A gente
na verdade não tinha visão do negócio, aconteceu. Nós viramos
contratantes e as associações uma sub-estipulante. Para os usuários
tinha a vantagem de um comprador de porte, na hora de negociar
reajuste. A associação tem risco zero e a operadora também. Eu
banco o risco de inadimplência, faço o pós-venda e a distribuição.
Não há barreira de entrada à concorrência, mas há muita
especificidade."
Em 1998 Júnior segregou o que
era a venda do pós-venda. Dois terços era pós-venda, que se tornou
a Administradora de Benefícios. Em 2008, pouco antes da crise
financeira mundial, a Qualicorp negociava com o fundo de private
equity General Atlantic (GA) para ganhar musculatura. Embalado pela
onda dos IPOs de 2007, vendeu 33% da empresa à GA. Em 2010, o IPO
já estruturado, o fundo americano Carlyle, em 90 dias, comprou a
parte da GA, uma fatia de Júnior e ficou com 72% da Qualicorp. A
transação foi rápida e naquele momento só houve tempo para o
compromisso informal de que Júnior ficaria à frente da companhia e
não venderia a participação de 28% sem sua autorização. Nove meses
depois, o Carlyle anunciou o IPO e depois fez mais um "follow-on".
Em novembro de 2012 saiu da empresa com um ganho de 200%, nas
contas de Júnior, que veio reduzindo sua fatia para os atuais 15%,
mas continuou na gestão.
Hoje, 22 anos depois, Júnior
continua acreditando que o atendimento pós-venda é o caminho para
controlar o custo do plano de saúde e tornar o setor sustentável.
"Não tem nenhuma fórmula. É o mais arroz-feijão-bife-batata frita
que você possa pensar do mundo."