Existem dois substantivos que valem um adjetivo. Quem tem proteção
ou defesa está seguro. Divertido como caça ao tesouro no
dicionário, esse jogo é coisa séria para a executiva Rosana Passos
de Pádua que sabe, mais que a maioria, o significado da palavra. Há
três meses na presidência da Coface Brasil, ela conta que a
pandemia não trouxe má notícia para o seguro de crédito.
Ao contrário, os prêmios cresceram 47% em 2020 ante o ano anterior
e para mais de meio bilhão de reais.
De
janeiro a abril de 2021, a expansão foi de 40% sobre um ano antes.
A Coface Brasil é um braço da seguradora francesa e sua presença em
mais de 100 países revela que tamanho é documento. O seu banco
global de dados reúne informações de 80 milhões de empresas.
A
retração econômica e as incertezas decorrentes da pandemia, além de
maior conhecimento das empresas sobre seguro de crédito como
ferramenta para mitigar o risco da inadimplência, elevaram a
demanda por esse serviço. Mas alguns setores tomaram à frente do
movimento no último ano e meio: agronegócios, informática, varejo,
eletroeletrônicos, farmacêutico e o mercado exportador.
Confiante no crescimento econômico global e brasileiro, Pádua
revela, contudo, particular preocupação com o processo
inflacionário que poderá conduzir o país a um conhecido ciclo
vicioso de mais inflação e mais juro – combinação deletéria para as
companhias e sem que o país tenha as finanças ou a economia sob
controle.
Neste novo posto, a matemática e especialista em gestão de risco
amplia um currículo admirável não apenas por funções que
desempenhou, mas também de marcas em que aplicou seu conhecimento.
Pádua já atuou como CFO da Lavoro Holding, do Grupo Pátria, e
comandou a Diretoria de Governança Corporativa da Companhia
Siderúrgia Nacional (CSN) e da BASF Brasil. A executiva orgulha-se
de ter fechado o primeiro seguro de crédito no país da subsidiária
do grupo alemão, líder do setor químico no mundo. Hoje ela dedica
parte de sua agenda à negociação de parcerias em operações
estruturadas com bancos que operam com recebíveis de crédito com o
objetivo de gerar valor e baratear o custo das operações.
Nessa conversa com o EXAME IN, ela relata a
rotina de especialistas em gestão de risco, alerta que a inflação
exige maior atenção do governo e vê, nesse cenário, o aumento da
taxa de juro como medida inevitável a ser tomada.
A pandemia tornou-se mais um gatilho para o seguro de crédito
e quem toma a decisão nas empresas?
Quem
toma a decisão é o CFO que identifica um cenário de incertezas e de
riscos à frente e avalia as ferramentas existentes para mitigar
esses riscos, lembrando que incerteza não é um risco materializado
e, portanto, exige maior esforço de análise. O seguro de crédito é
uma das ferramentas mais potentes contra perdas. Não estamos
passando por isso, mas em um cenário sem garantia de recebimento
[risco que a pandemia trouxe a valor presente], quais são as
perspectivas para as empresas numa situação como essa? Um primeiro
impacto é a decisão de jogar a [potencial] perda nos resultados e
fazer provisões. Um segundo impacto, talvez mais danoso, é a
ausência de fluxo de caixa [no limite, há risco de repercussão
sistêmica].
No ano passado, as empresas
agiram de maneira diferente em função da pandemia?
Estamos notando comportamento muito
parecido em 2020 e 2021. As empresas têm buscado mais proteção dada
a grande incerteza com a pandemia. Ninguém sabia exatamente para
onde as economias caminhariam durante esse processo e o interesse
pelo seguro de crédito cresceu. Os prêmios aumentaram. De 2019 para
2020, o total de prêmios da Coface Brasil aumentou 47%, passando de
R$ 370 milhões para R$ 543 milhões. De janeiro a abril deste ano,
os prêmios arrecadados somaram R$ 241 milhões, ante R$ 171 milhões
em igual período do ano passado, um crescimento de 40%.
Temos avaliação de
sinistros?
Os sinistros demoram a ser
observados. Como exemplo, uma empresa realiza uma venda por 90 dias
em dezembro. A perspectiva é de recebimento em março do ano
seguinte. Em caso de não recebimento, há um processo de negociação
com o cliente. Há, portanto, um tempo para materializar o não
cumprimento da operação. Mas temos observado que, em 2020 e também
em 2021, os sinistros estão vindo menores do que se imaginava para
um período de incerteza tão grande.
As empresas estão menos
inadimplentes do que poderiam estar?
Estão sim e a explicação está no
comportamento da própria economia. Os fatores que têm sustentado a
economia brasileira e global são os preços das commodities e de
toda a cadeia de produção chegando aos alimentos; os programas
governamentais para empresas que ocorreram na maioria dos países
ainda que com estratégias diferentes, o que conteve perdas
significativas; o auxílio emergencial no Brasil que ajudou e ajuda
diretamente a população e seguramente se transformou em consumo. No
geral, esses fatores fizeram com que as empresas se sustentassem e
não ocorresse uma inadimplência sistêmica.
Alguns setores recorreram
mais ao seguro de crédito no Brasil?
Toda a cadeia de agronegócio por
ser muito dependente de preços de commodities e com riscos que
transcendem à pandemia porque o setor também é exposto a riscos
climáticos; a cadeia de informática; varejo; eletroeletrônicos e
eletrodomésticos; farmacêutico; e o mercado exportador que é um
nicho de forte atuação da Coface. Globalmente, a Coface detém em
seu banco de dados cerca de 80 milhões de empresas. E, além de
informações, temos experiência de crédito com todas essas
companhias. Quem vai exportar para qualquer parte do planeta nos
consulta porque, além do seguro de crédito, vendemos serviços de
informações.
Qual é a participação da
operação brasileira na Coface global?
Infelizmente, nossa participação é
pequena. Hoje, 2,5%. A ideia é crescer, mas essa fatia se deve à
combinação de dois fatores: o seguro de crédito é muito conhecido e
utilizado nas principais economias há décadas e, no Brasil, há
desconhecimento sobre essa ferramenta poderosa para mitigar riscos.
As empresas brasileiras que mais utilizam os nossos serviços são
exatamente as que têm maior experiência na gestão de riscos.
O Brasil volta a crescer, mas
com juro em alta. Essa condição compromete o negócio da
Coface?
Uma taxa de juro elevada afeta o
nível de alavancagem e as empresas endividadas vão sofrer mais
fortemente que demais. Isso nos preocupa sim porque, quando
firmamos seguro estamos, na prática, concedendo crédito às
companhias. Mas tão ou mais relevante quanto o juro é o processo
inflacionário em curso com índices de preços que, em 12 meses, já
superam 8%. [E esse processo tem duas faces] De um lado, a economia
não se sustenta com juros negativos; e, de outro, a inflação pode
levar a um conhecido ciclo vicioso, de mais inflação e mais juros.
E, no tempo, menos crescimento.
O atual processo
inflacionário é mais preocupante?
Nunca vi um descolamento tão grande
entre índices do atacado e do varejo, além da pressão inflacionária
acumulada.Esses fatores têm nos preocupado mais do que a taxa de
juros. Se as companhias endividadas tiverem o poder de repassar aos
preços essa inflação que vem por vários canais – alta de
commodities, preços administrados, câmbio e agora a crise hídrica –
corremos o risco de sistematizar a inflação e o juro deverá
acompanhar. De novo, o ciclo vicioso já conhecido, de mais inflação
e mais juro, é grave. O país não tem as finanças e nem a economia
sob controle para retomar esse ciclo.
Ainda assim, a retomada da
economia é animadora?
Estamos confiantes na retomada. No
ano que vem o crescimento será mais modesto. Na verdade,
voltaremos, ao final deste ano, a um Produto Interno Bruto (PIB) do
patamar de 2019 e, a seguir, entraremos no ritmo de crescimento
histórico brasileiro na casa de 2,5% ao ano. Mas devemos nos
lembrar que 2022 é um ano eleitoral. E a história, para além de
opinião, nos mostra que nos anos eleitorais há repique de inflação
por gastos públicos maiores. E não conhecemos o comportamento deste
governo, uma vez que será o seu primeiro processo de reeleição. Não
sabemos exatamente como esse processo eleitoral vai se dar com o
país saindo da pandemia. Oxalá, esteja saindo da pandemia.
Quais serão os focos de
atenção em 2022?
Precisamos de maior atenção à
inflação e à política monetária a ser executada para segurar a
inflação. Eu já vivi inflação de 80% ao mês e vejo a inflação
como um mal que empobrece o pobre ainda mais por tirar dele o poder
aquisitivo de uma forma cruel. O governo precisa estar atento e
tomar as medidas necessárias [para evitar esse empobrecimento] e
uma dessas medidas, por mais que doa, é o aumento da taxa de
juros.