Setor representa o que foram o petróleo, a indústria
automobilística e o aço no passado, diz pesquisador
Coordenador de prospecção e líder do grupo de pesquisa
Desenvolvimento e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Carlos
Grabois Gadelha afirma que a saúde é uma das principais forças para
o crescimento da economia neste século – como foram o petróleo, a
indústria automobilística e o aço no passado – e que a pandemia
mostrou que os países que não investirem em saúde ficarão
vulneráveis e sem crescimento.
“Sem
capacidade econômica, produtiva e tecnológica na saúde, não teremos
direito à vida ”, diz ele, que defende fortalecer o complexo
econômico-industrial da saúde, com iniciativas como reconstrução da
capacidade de atuação sistêmica do governo e financiamento para
ciência e tecnologia.
Foi lançado ontem o projeto Desenvolvimento, saúde e mudança
estrutural: O Complexo Econômico-Industrial da Saúde 4.0 no
contexto da covid-19, coordenado pela Fiocruz para pensar políticas
para o setor. A seguir, os principais trechos da entrevista
ao Valor
Econômico:
Valor: No novo mundo
pós-pandemia, qual é o papel da saúde?
Carlos Grabois Gadelha: A saúde é uma das áreas mais críticas para
as perspectivas de futuro em termos globais e para a inserção do
Brasil. É um complexo econômico que representa 10% do Produto
Interno Bruto [PIB]. Nos países mais desenvolvidos, essa parcela do
PIB se aproxima de 15%, caminhando para 20%. No Brasil, são R$ 700
bilhões em termos de valor adicionado por ano, mais do que o peso
de toda a indústria. Se no século passado se falava em petróleo,
aço ou indústria automobilística, não tenho dúvida de que neste
século a gente vai falar de quarta revolução tecnológica, do
complexo industrial da saúde, de tecnologia de informação e de
comunicação.
Valor: E como fica a relação
entre a saúde e a economia?
Gadelha: Com a pandemia, o que vínhamos estudando há 20 anos na
Fiocruz, ao tratarmos do complexo econômico-industrial da saúde, se
confirmou. A saúde é vetor e mola propulsora do desenvolvimento. Ao
mesmo tempo, quem não tiver capacidade econômica, produtiva e
tecnológica em saúde vai ficar fora do século XXI e vulnerável. Sem
capacidade econômica, produtiva e tecnológica na saúde, não teremos
direito à vida. Como dizia [John] Keynes, a economia deve estar a
serviço da sociedade, não há contradição entre vida e economia. Ou
a gente a junta as políticas de ciência, tecnologia, industrial e
de inovação, direcionadas por um serviço social, que é o acesso
universal à saúde e o direito à vida, ou o Brasil vai crescer
pouco, ser pouco dinâmico e não vai garantir o direito à vida.
No
contexto atual, investir na saúde poderia ser o motor principal
para tirar a economia da crise. Um programa de investimento público
que puxasse o investimento privado na produção de medicamentos, de
vacinas, de equipamentos e em toda área de serviços, tecnologia de
informação e software seria um belo programa para cuidar da vida e
da saúde e, ao mesmo tempo, gerar emprego, inovação e investimento.
No fundo, é necessário mudar os óculos míopes que veem a saúde como
despesa. O gasto em saúde é investimento. Quem não tem saúde não
tem futuro. É necessário mudar os óculos míopes que veem a saúde
como despesa, é investimento. Quem não tem saúde não tem
futuro”
Valor: Qual é o foco do estudo
que acabam de lançar?
Gadelha: É um trabalho conjunto liderado pela Fiocruz, com 35
pesquisadores, de dez instituições ao todo, com o tema
“Desenvolvimento, saúde e mudança estrutural: O Complexo
Econômico-Industrial da Saúde 4.0 no contexto da covid-19”. Fizemos
uma parceria com o Centro Internacional Celso Furtado, que dedicou
uma edição inteira da revista “Cadernos do Desenvolvimento” ao
tema. A revista junta o pensamento da economia do desenvolvimento
com um pensamento sanitarista que coloca a economia a serviço da
saúde, e não o inverso.
A
ideia é pensar a retomada do desenvolvimento no contexto da
pandemia e no contexto pós-pandemia. A marca dessa revista é trazer
uma visão que coloca um novo paradigma de política pública, com
propostas de políticas que relacionam as questões estruturais do
crescimento econômico com o enfrentamento das enormes carências do
SUS. O mundo da saúde coletiva não falava da centralidade do
desenvolvimento econômico, social e produtivo no campo da saúde. E
havia quem achava que fazer política industrial e tecnológica para
o complexo de saúde seria uma aberração. Mostramos que essa
convergência é possível.
Valor: O que o conceito do
complexo econômico-industrial da saúde engloba?
Gadelha: O conceito do complexo econômico-industrial da saúde
mostra que há uma interdependência entre as dimensões econômicas e
sociais do desenvolvimento. O complexo é o outro lado da moeda do
SUS. Sem base econômica, tecnológica e material, o sistema
universal não tem sustentação, tem os pés de barro. A questão é a
interdependência: não posso enfrentar a covid-19, por exemplo, sem
atenção básica, sem atenção especializada, sem vacina, sem
ventilador e sem medicamento anestésico. Se qualquer parte desse
sistema não funciona, há impacto.
O
complexo engloba quatro subsistemas importantes. O primeiro é o de
base química e tecnológica, onde estão toda a indústria
farmacêutica e as vacinas. O segundo é a de base mecânica e
eletrônica, onde se encontra a produção de equipamentos e materiais
como ventiladores, ressonância e tomógrafos. Há o terceiro, que
engloba todo o sistema de serviços e de tratamento de saúde, onde
está a atenção primária e especializada. E existe agora um quarto
subsistema, que é o de informação e de conectividade, que invade
todos os demais. A vacina para a covid-19 não teria sido
desenvolvida em menos de um ano sem inteligência artificial e sem
uso sistemático de “big data” para avaliar a eficácia das vacinas
quase em tempo real. Se essas áreas não conversam, o tratamento
para a covid-19 vai fracassar.
Valor: E o que esse quarto
subsistema muda a realidade da saúde?
Gadelha: A distância entre os países e empresas que têm ou não
tecnologia aumentou. Quase 90% das patentes estão em apenas dez
países. É preciso correr no tempo e diminuir a distância, é o
grande desafio estratégico. O sistema da saúde está passando por
uma revolução completa. Não se faz mais medicamento, vacina ou
atenção primária sem inteligência artificial e “big data”. Quem não
acompanhar a revolução [da saúde] não vai conseguir atender sua
população nem na covid-19 e nas suas consequências nem nas futuras
pandemias e nos desafios da saúde pública que vamos enfrentar.
Antigamente, os economistas falavam em déficit comercial de
equipamentos, de reativos… A pandemia mostra que a visão de sistema
econômico e produtivo do complexo é essencial para o
desenvolvimento. É preciso calcular o déficit comercial da saúde, e
não apenas de equipamentos. A importação em saúde no país atinge
US$ 15 bilhões. Se somar o que se paga por conhecimento, softwares
e patentes, o valor chega a US$ 20 bilhões.
O
Brasil hoje gasta o equivalente a um orçamento inteiro do
Ministério da Saúde sem gerar emprego, inovação, nem conhecimento
que seja desenvolvido pelas instituições brasileiras.
Valor: Que políticas públicas
são necessárias?
Gadelha: A primeira questão é recuperar institucionalidade perdida
quando foi encerrado o grupo executivo que tratava do complexo da
saúde. É preciso uma política sistêmica para articular ações de
governo, isso não é blá-blá-blá. Sem isso, a área social vai para
um lado, a industrial, para outro, assim como a econômica e a de
ciência e tecnologia. Além disso, os investimentos devem ser vistos
como políticas de Estado de longo prazo. A Fiocruz e o Instituto
Butantan só estão dando respostas agora pelos 20 anos de
investimentos em inovação.
É
importante também criar um ambiente institucional seguro para o
gestor público poder inovar. Devemos imitar o [Joe] Biden, que
atualizou o “Buy American Act” [preferência a produtos fabricados
nos EUA]. É preciso usar o poder do Estado para que as compras
públicas gerem emprego e renda no Brasil. As políticas de
financiamento também são importantes, tanto com recursos
orçamentários, quanto via BNDES e Finep. É preciso vincular o
financiamento a produzir e gerar conhecimento no Brasil.