Maiores devedoras são a Hapvida e a NotreDame Intermédica, que
anunciaram fusão este ano e respondem por um terço da dívida das
operadoras com os cofres públicos
Se você tiver plano de saúde, sofrer um acidente e for encaminhado
a um pronto-socorro do Sistema Único de Saúde (SUS), a lei
determina que a conta do atendimento seja enviada para a sua
operadora. Porém, em vez de cumprir a legislação e pagar as
faturas, parte das empresas prefere questionar os valores na
Justiça e acumular dívidas com a União – “travando” bilhões de
reais, que poderiam ser investidos em melhorias no serviço público
de saúde.
Por
conta dessa estratégia, os planos privados devem cerca de R$ 2,9
bilhões ao SUS, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar
(ANS), responsável por fiscalizar o setor e cobrar o pagamento.
As maiores devedoras são a Hapvida e a NotreDame Intermédica, que
anunciaram fusão em março deste ano e devem juntas ao menos R$ 648
milhões (22% do total). Elas negam que a judicialização e o atraso
nos pagamentos são uma estratégia de negócio e acusam a ANS de
realizar cobranças indevidas. Entre os serviços com mais
indenizações pendentes estão hemodiálise, transplante de rim,
radioterapia e parto.
Mas enquanto os débitos se arrastam na Justiça, o SUS deixa de
receber recursos previstos em lei. Com os R$ 2,9 bilhões da dívida
total, equivalente a US$ 588 milhões, daria para comprar ao menos
58 milhões de doses de vacinas contra a Covid-19 (considerando o
valor de 10 dólares por dose pago pelo Ministério da Saúde na
maioria das vacinas), o que seria suficiente para imunizar 29
milhões de pessoas.
Hemodiálise, transplante de rim e radioterapia estão entre os
procedimentos com maior índice de ‘calote’ ao SUS por parte dos
planos de saúde “Esses valores fazem falta. Trata-se de uma
injustiça, um favorecimento às empresas, que estão sempre no azul,
enquanto o SUS é subfinanciado”, afirma o pesquisador José Antonio
Sestelo, representante da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde
Coletiva) na Comissão de Saúde Suplementar do CNS (Conselho
Nacional de Saúde), órgão que monitora as ações do Ministério da
Saúde.
Por que a cobrança é feita?
O ressarcimento ao SUS consta na Lei 9.656, de 1998, e foi criado
como uma forma de equilibrar as contas do sistema público e evitar
que as operadoras ganhem duas vezes: com as mensalidades pagas, e
sem gastar com o atendimento aos clientes. A medida não tem impacto
financeiro ao usuário, já que a conta é enviada ao plano de
saúde.
“As empresas cobram dos seus clientes e incluem a oferta de
determinados serviços. Se o paciente usou o hospital público, a
operadora está ganhando sem trabalhar, sem gastar com equipe e
estrutura, por isso o SUS pede o ressarcimento”, explica
Sestelo.
Parte das empresas de planos de saúde tem dívidas bilionárias com a
União, travando investimentos em melhorias no SUS
O dinheiro arrecadado vai para o Fundo Nacional de Saúde (FNS), uma
conta com verbas destinadas aos governos federal, estadual e
municipal para diversas finalidades, como a construção de unidades
de saúde, a compra de equipamentos e o pagamento de profissionais.
Deste fundo também vem parte dos recursos que financiam a campanha
de vacinação contra a Covid-19.
Inadimplentes em fusão
O ranking de devedoras é liderado pela Hapvida, que tem débito de
R$ 382 milhões e nunca pagou um único centavo. Em seguida vem a
NotreDame Intermédica, com dívida de R$ 265 milhões, dos quais
quitou apenas R$ 9.306 (0,003% do total), segundo a ANS.
A fusão das companhias, que depende ainda da aprovação do Cade
(Conselho Administrativo de Defesa Econômica), dará origem à maior
operadora de planos de saúde do país, com 8,4 milhões de clientes e
receita líquida de R$ 18 bilhões.
A
Hapvida é líder no Norte e Nordeste, e a NotreDame, no Sudeste. As
duas têm foco em clientes com menor poder aquisitivo (a média da
mensalidade é de R$ 220) e ficaram conhecidas por investir em rede
própria de atendimento e usar estratégias agressivas de compra de
concorrentes locais.
Por trás da Hapvida está um dos homens mais ricos do Brasil, o
oncologista Candido Pinheiro Koren de Lima, de 74 anos, que está na
lista da Forbes ‘Bilionários do Mundo 2021’, com sua fortuna
estimada em US$ 4 bilhões. Em 1979, ele fundou em Fortaleza (CE) a
Clínica Antônio Prudente, que em 1993 se tornaria uma operadora de
planos de saúde. Em 2018, anunciou abertura de capital na bolsa de
valores.
Já a NotreDame foi criada pelo médico Paulo Sérgio Barbanti em
1968, em São Paulo. Ao longo do tempo, a empresa fez uma série de
fusões e, em 2014, passou a ser gerida pelo fundo norte-americano
Bain Capital.
Segundo o Banco Central, ambas estão inscritas na Dívida Ativa em
razão do não ressarcimento ao SUS. De acordo com o banco, a Hapvida
entrou em 2013 para o Cadin (uma espécie de “Serasa” das empresas e
pessoas que devem ao governo federal), e a NotreDame está na lista
desde 2016.
Apesar de esse cadastro limitar a obtenção de créditos e incentivos
fiscais, ambas empresas não só continuaram crescendo e comprando
concorrentes nos últimos anos, como atualmente prestam serviço para
órgãos públicos.
Em maio, a Hapvida assinou contrato de R$ 4,1 milhões com a Sudam
(Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) para atender
servidores ativos, inativos e seus dependentes pelo período de um
ano. A NotreDame Intermédica, por sua vez, tem contratos com as
Forças Armadas, como o firmado em fevereiro com o Centro
Tecnológico da Marinha em São Paulo, no valor de R$ 1 milhão.
Como é calculada a indenização
A dívida das operadoras é calculada pela ANS a partir do cruzamento
de informações sobre os atendimentos no SUS e os usuários dos
planos de saúde. Técnicos avaliam os dados e corrigem eventuais
erros antes de mandar a fatura para os planos privados, que recebem
relatórios sobre os clientes atendidos no SUS, como nome, data,
local e procedimento realizado. Depois da notificação, as
operadoras podem recorrer administrativamente, questionando valores
ou inconsistências.
Na fase de recursos, os argumentos mais comuns das operadoras são
de que o paciente estava em período de carência, que o serviço não
está previsto no contrato ou que está em formato de coparticipação
(quando o beneficiário precisa arcar com parte do valor). Se
comprovado o argumento, a ANS pode cancelar a cobrança ou
recalculá-la. Caso contrário, é emitido boleto para pagamento e
começam a contar os juros.
O fato de apenas atendimentos ambulatoriais complexos, como
quimioterapia, poder ser ressarcido também gera críticas por parte
de especialistas, já que consultas e outros procedimentos de menor
valor também geram despesas para o SUS
Os dados da ANS mostram que a estratégia padrão de algumas
companhias é recorrer administrativamente e, depois, empurrar a
dívida na Justiça. “É claro que as empresas não querem pagar, então
as operadoras vão prorrogando até a hora que der”, afirma Isabela
Soares Santos, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da
Fiocruz.
As falhas do processo
A judicialização se baseia em três pontos, segundo o advogado Luiz
Felipe Conde, presidente da Comissão Especial de Saúde Suplementar
do Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). As
empresas questionam o cálculo da ANS, já que a agência utiliza como
base a tabela de serviços do SUS e multiplica o valor por 1,5; o
momento em que os juros começam a valer e o prazo em que as dívidas
caducam.
A ANS afirma que tem investido em tecnologia e pessoal para
agilizar e aprimorar os processos, seguindo uma recomendação do
TCU. “Desde 2015, o índice efetivo de pagamento se manteve acima de
70%, alcançando mais de 80% em 2019”, afirma. Apesar disso, por
conta da pandemia e da suspensão dos prazos, o calote aumentou e os
pagamentos recuaram para 63,2% em 2020.
Apesar das mudanças implementadas pela ANS, os dados mostram que o
sistema ainda tem falhas. A primeira delas é o longo prazo de um
ano até que uma operadora seja notificada. À Repórter Brasil,
técnicos da agência disseram que esse prazo já chegou a quatro anos
e que, para reduzi-lo mais ainda, seria preciso mudar os
procedimentos no SUS, que demora para consolidar os dados e
deixá-los “prontos” para a ANS fazer a conta.
Outro problema é que são cobrados apenas os atendimentos
ambulatoriais de alta complexidade (APAC), como hemodiálise e
quimioterapia, e os procedimentos de internação hospitalar (cuja
sigla é AIH), ficando de fora as consultas. “Essas despesas
ambulatoriais, tecnicamente de menor valor, geram gastos para o SUS
e não são ressarcidas.”, explica Sestelo.
Questionado pela Repórter Brasil, o Grupo NotreDame não reconheceu
a dívida de R$ 265 milhões com o SUS, apesar de a empresa constar
na “lista suja” de devedores da União.
A operadora argumenta que, “quando entende que as cobranças não são
pertinentes, esgotados os meios das defesas administrativas e
exerce o seu direito de discutir em âmbito judicial, efetuando 100%
dos respectivos depósitos de garantia”.
Já a Hapvida afirmou que se manifestaria por meio da Abramge
(Associação Brasileira de Planos de Saúde). Em nota, a associação
criticou a demora da ANS em notificar as operadoras, afirmou que a
judicialização é um direito e que por isso questiona as cobranças,
mesmo após o Supremo Tribunal Federal decidir que a indenização ao
SUS é constitucional.
Esses quase R$ 3 bilhões desse calote ao SUS (dívida até dezembro,
sendo que R$ 1 bilhão está em disputa judicial), somado aos lucros
crescentes das operadoras e à fusão das líderes do ranking são um
retrato da saúde privada no Brasil: “Esse mercado tem ficado
altamente oligopolizado e isso aumenta a influência política das
empresas”, diz Sestelo, da Abrasco.