Casos tão complexos como a acusação contra um médico que realizou vasectomia no paciente em vez de uma cirurgia de fimose ou a imputação de erro no diagnóstico e tratamento de um tumor benigno que acabou se tornando maligno e levou uma mulher à morte têm cada vez mais chegado à Justiça no Brasil.
Acusações referentes a erro médico somaram 70 novas ações por dia no país – ou três por hora – em 2017. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foram pelo menos 26 mil processos sobre o assunto no ano passado.
O órgão compila dados enviados por tribunais estaduais e federais, além do STJ (Superior Tribunal de Justiça) - onde foram parar os dois casos citados anteriormente. Por inconsistências metodológicas entre as bases, contudo, o número pode ser maior.
Também por essa ressalva, o conselho não recomenda a comparação da evolução anual. Mas os números de alguns tribunais dão a dimensão da tendência com o passar dos anos: no STJ, novos casos referentes a erro médico passaram de 466 em 2015 para 589 em 2016 e 542 em 2017. No TJ-SP, o maior do país, os números passaram de 5,6 mil (2015) a 2,9 mil (2016) e, finalmente, 4,6 mil (2017).
Para entrevistados de diversos lados do balcão, o volume de ações na Justiça se relaciona com um quadro mais geral de judicialização da saúde. Este é o nome dado à crescente busca, por parte de cidadãos, do judiciário como alternativa para garantia do acesso à saúde, por exemplo por remédios ou tratamentos - o que, por sua vez, esbarra nas limitações orçamentárias do Poder Público ou no planejamento de empresas privadas no ramo.
E o fenômeno tem ligação também com outra faceta: a busca pelos chamados seguros de responsabilidade civil profissional. Em linhas gerais, este serviço funciona com o pagamento de apólices por trabalhadores como médicos e veterinários que, em caso de se tornarem réus em ações relacionadas com o exercício de suas ocupações, têm custos como pagamento de honorários de advogados e eventuais indenizações cobertos.
Segundo dados da Superintendência de Seguros Privados (Susep), esta categoria vem crescendo nos últimos anos. Em valores reais, os prêmios (prestações pagas pelos contratantes) do RC Profissional passaram de R$ 236 milhões em 2015 para R$ 312 milhões em 2016 e R$ 327 milhões em 2017. O primeiro semestre de 2018 já mostra avanço em relação ao mesmo período de 2017: crescimento de 8%. São 15 empresas atuando no segmento.
A Mapfre, uma delas, viu aumento de 10% no número de apólices adquiridas e de 18% em prêmio no acumulado de doze meses (julho de 2017 a junho de 2018 versus julho de 2016 e junho de 2017). As ocupações atendidas estão todas no ramo da saúde: médicos, dentistas, veterinários, fonoaudiólogos, farmacêuticos e enfermeiros.
Ambas fontes não dispõem de dados de contratações específicas por médicos.
Mas a adesão a este tipo de serviço tem uma barreira peculiar: o Conselho Federal de Medicina (CFM) e representações regionais da categoria recomendam explicitamente a não contratação do seguro.
Por que entidades que representam a categoria são contra
"Os conselhos pregam que a relação entre médico e paciente deve ser da maior confiança possível, construída na base da generosidade e segurança. Quando o médico já está protegido pelo seguro, a relação começa na defensiva", aponta José Fernando Vinagre, corregedor do CFM.
Outro argumento apresentado pela entidade é o de que exemplos internacionais mostrariam que a adesão da classe médica ao seguro contribuiria a um aumento no número de ações - "que muitas vezes se baseiam em pedidos quase sempre emitidos, destemperadamente, por pacientes mal orientados, ou ainda envolvendo interesses financeiros de terceiros", segundo diz um comunicado do CFM.
A entidade critica ainda as restrições na cobertura dos seguros e uma relação custo-benefício não compensadora.
Segundo o advogado Renato Assis, especialista em Direito da Saúde, o crescimento do mercado de seguros para médicos é reflexo de um cenário preocupante: o de que o Brasil está se aproximando à cultura americana, "a mais litigante do mundo". Em linhas gerais, lá como cá especialidades como obstetras, ginecologistas e cirurgiões são mais vulneráveis a acusações de erro - e, assim, a apólices mais caras.
Dependendo da especialidade, os custos mensais para o segurado podem variar de R$ 100 a R$ 1000, considerando uma faixa de cobertura de R$ 500 mil em prêmio.
"O percentual de médicos processados nos EUA gira em torno de 9%. No Brasil, já temos cerca de 7% de médicos processados", escreveu Assis por e-mail à BBC News Brasil.
"Em relação aos profissionais, é inegável que houve a chamada 'mercantilização' da profissão. Está praticamente extinta a figura do médico familiar, inquestionável como um sacerdote. Hoje temos em regra uma relação mais fria, com atendimentos muitas vezes rápidos e desumanizados por conta da precariedade das condições de atendimento e jornadas de trabalho, aliada à alta quantidade de atendimentos em curto espaço de tempo por conta da atuação dos planos de saúde".
A referência aos EUA quando o assunto são seguros para médicos é frequente - já que, naquele país, este é um mercado gigante. Somente em 2017, seguros destinados especificamente a médicos somaram prêmios de mais de US$ 9 bilhões (cerca de R$ 29 bilhões em valores de dezembro de 2017), de acordo com a Associação Nacional dos Comissários de Seguros (Naic, na sigla em inglês).
Lá, a contratação do serviço pela categoria é a regra. Há até uma expressão para classificar os médicos que são a exceção e não contratam este tipo de serviço: são aqueles que decidem "go bare", algo como "atuar nu".
Segundo a Associação Médica Americana (AMA, na sigla em inglês), pelo menos sete Estados americanos (Colorado, Connecticut, Kansas, Massachusetts, New Jersey, Rhode Island e Wisconsin) exigem a aquisição de algum tipo de seguro para a prática médica.
"É extremamente importante observar que, embora muitos Estados não exijam que os médicos obtenham níveis mínimos de seguro de responsabilidade profissional, na prática, os médicos precisam ter um nível mínimo deste serviço para obter benefícios como funcionários de um hospital ou para ter cobertura de planos de seguro de saúde", explicou a entidade por e-mail à BBC News Brasil.
Marcio Guerrero, presidente da comissão de Responsabilidade Civil Geral da Federação Nacional de Seguros (FenSeg), aponta que, na prática, um médico recém-formado nos EUA só passa a atender se tiver uma apólice.
"Eles sabem que podem ter um problema severo, já que as indenizações por lá são altas e rápidas", aponta Guerrero, "No Brasil, a cultura do seguro não é muito clara, ele não é visto como um investimento. Mas o mercado (de seguros de Responsabilidade Civil) está em expansão, já que o país que tem 452 mil médicos".
"Este tipo de seguro protege primeiro a reputação e depois o patrimônio do médico, com o custeio da defesa jurídica. Fora que o seguro assume os trâmites posteriores ao incidente: como quando você bate um carro e nunca mais vai encontrar a outra pessoa envolvida no acidente, porque a seguradora assume."