Artigo escrito por Ernesto Tzirulnik e Luca Giannotti
Há quem festeje as “mudanças regulatórias” na área de seguro. Provavelmente por conveniência, obtusa ideologia ou engano. O Brasil tem assistido ao desmonte do regime jurídico dos contratos de seguro, mal que demandará décadas de reparos. A corsária invectiva é capitaneada por superintendente que deixou clara a falta de empatia social ao apontar que a Covid-19 promoveria limpeza saneadora nas bases da Previdência, segundo noticiou o Estadão em 28/5/2020.
Quem tem vencido todos os rounds nessas “mudanças regulatórias”, senão os agentes da oligarquia resseguradora? Em benefício dos resseguradores, a resolução CNSP nº 382/2020 nem triscou a opacidade das comissões de resseguro e demais “custos comerciais” desse privilegiado setor. A resolução CNSP nº 407/2021 alargou a definição de seguros de grandes riscos e inventou, com mentirosas justificativas, um artificial regime jurídico paritário para os seguros de danos, que todos sabem são minuciosamente ditados, na prática, pelos resseguradores.
Basta ler o artigo 4º dessa última norma para ver as impressões digitais deixadas pelos ideólogos governistas. Ninguém jamais viu, nem jamais verá, “contratos de seguro de danos para cobertura de grandes riscos… regidos por condições contratuais livremente pactuadas entre segurados… e a sociedade seguradora”. É tão falso quanto dizer que a cloroquina protege contra a doença que enterrou sem velório mais de meio milhão de brasileiros.
É assombroso o que acontece na seguridade da tão abusada e combalida economia brasileira.
Para coroar o terraplanismo securitário, no último dia 15 a Superintendência de Seguros Privados (Susep) divulgou, por meio do Edital de Consulta Pública nº 22/2021, uma minuta de circular que pretende modificar substancialmente o modo como os contratos de seguro se formam no Brasil.
É mais uma investida para acomodar as coisas para os resseguradores internacionais. Como todos sabem, ao abrir o mercado de resseguro, o Legislativo esqueceu de proteger a sociedade com uma lei especial de contrato de seguro. Abriu-se o galinheiro e as raposas ficaram soltas. As seguradoras passaram a ter problemas, pois os contratos de seguro continuaram formando-se consensualmente, bastando a falta de recusa em prazos determinados (15 e sete dias) para considerar-se perfeito o contrato, enquanto elas, para terem os indispensáveis resseguros, sujeitaram-se a um regime de aceitação expressa e sem prazo. No fim, viram-se ameaçadas de desproteção do resseguro essencial para o exercício da atividade seguradora.
Embora o resseguro e a retrocessão devessem integrar-se ao seguro para a devida proteção da sociedade, tal como previsto no artigo 4º do Decreto-Lei nº 73/1966, a Susep, a serviços dos resseguradores, decidiu fazer o contrário: integrar o regime dos seguros ao regime do resseguro e acabar, ilegalmente, com a proteção dos segurados e beneficiários. Agora os seguros passarão a formar-se como formam-se os resseguros. Só mais “uma gripezinha” que piorará — e muito — os seguros brasileiros.
Entre as diversas modificações previstas, duas causam espanto.
A primeira é a taxatividade de formas para o comportamento concludente da seguradora (artigo 4º, §1º, da minuta):
“§1º. Desde que ocorridos dentro do prazo de que trata o caput, os seguintes eventos caracterizam a aceitação da proposta e substituem a manifestação expressa da sociedade seguradora:
I — a emissão e envio ou disponibilização da apólice ou do certificado individual, observado o artigo 11; ou
II — a cobrança total ou parcial de prêmio”.
A segunda é a vedação à aceitação pelo silêncio no contrato de seguro (artigo 4º, §3º, da minuta):
“§3º. A ausência de manifestação no prazo de que trata o caput caracterizará a perda de validade da proposta, sujeitando a sociedade seguradora às penalidades administrativas cabíveis, e caracterizando, para fins de contratação de seguros no exterior, sua recusa”.
Essas propostas causam espanto porque ambas, além de irem contra a prática duradoura, estável e pacífica do nosso mercado de seguro, violam os artigos 107 e 111 do Código Civil e o artigo 2º do Decreto-Lei 73/1966, além de fugirem do poder regulamentar atribuído à Susep.
1) Em outras palavras, a proposta da Susep contraria o disposto na lei federal que pretende regulamentar, e, mesmo se essa vedação não existisse, a autarquia não tem poder para regular a formação do contrato de seguro com base no artigo 36, alínea “c”, do Decreto-Lei nº 71/1966.
2) Lamentavelmente, o Legislativo não está se dando conta da baderna que o governo vem promovendo no mercado segurador. As lideranças empresariais também continuam sem reagir. Não fazem ideia do tamanho do problema que está sendo plantado para o mercado. E, assim, a boiada queima não só as vidas e as florestas, como também os seguros.
Contrariedade ao Código Civil
A proposta da Susep traz clara contrariedade aos artigos do Código Civil. Nesse aspecto, podemos tratar os problemas separadamente. Em primeiro lugar: o artigo 107.
1) Artigo 107 do Código Civil: Diz o artigo 107 do Código Civil que “a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir.”
O artigo consagra o princípio da liberdade das formas. Ou seja, sem regra expressa em sentido contrário, a declaração de vontade não depende de forma especial. A forma — meio de expressão da vontade — pode ser escrita, tácita, expressa ou por sinal de fumaça.
O princípio da liberdade das formas existe para privilegiar a autonomia privada e não engessar o tráfego econômico, tornando vinculante todo e qualquer ato privado a não ser que a lei claramente exija uma forma específica para a exteriorização da vontade: “O consensualismo é, portanto, a regra; o formalismo, a exceção” (Tepedino, Gustavo et al. “Código Civil interpretado”. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2014, p. 223)
Todas as situações que exigem uma forma específica, fazem-no para proteger algum valor. É o que ocorre, por exemplo, na forma pública dos negócios sobre direitos reais acima de certo valor (artigo 108), nos quais a liberdade é restrita em favor da segurança jurídica criada pelo sistema registral, ou na forma escrita no contrato de franquia (artigo 7º, II, Lei 13.955), imposta para que o franqueado — elo economicamente mais fraco — consiga adequar-se ao padrão da rede do franqueador.
Mesmo nesses casos, os tribunais, privilegiando a tutela da confiança e a autonomia das partes, têm afastado em diversas situações a nulidade do contrato. Isso se dá pelos efeitos nocivos do formalismo injustificado. Os redatores do Código Civil alemão, ao elegerem a liberdade ampla de forma como um princípio para não afetar negativamente a circulação de bens, fazem uma observação prática muito pertinente sobre os problemas da forma obrigatória:
“Quando mais restrito for o requisito de forma para alguns tipos de negócios, mais sua não observância se tornará uma prática habitual. Porém, com isso, a segurança jurídica buscada com a forma obrigatória produz o efeito contrário, e o homem honesto e que confia [no negócio] fica sem qualquer defesa do abuso de sua confiança por uma contraparte desleal. Sobre esse último aspecto, durante a vigência da forma obrigatória, houve diversas experiências desfavoráveis” (Mugdan, Benno. “Die gesammten Materialen zum bürgerlichen gesetzbuch für das Deutsche Reich”. Berlin: Decker’s, 1899, v. I, p. 450).
Assim, a forma deve ser imposta apenas se e à medida em que haja boas razões para isso, e, em caso de vantagens duvidosas, deve-se privilegiar a liberdade. O legislador brasileiro, atento a isso, não tornou formal o contrato de seguro, porque não há qualquer razão econômica para que isso ocorra.
No capítulo sobre contrato de seguro no Código Civil, há apenas uma regra sobre a oferta de seguro do segurado (artigo 759), mas nada sobre a aceitação da seguradora, apenas sobre quando a apólice, mero documento probatório do seguro, deve ser emitida:
“Artigo 759 — A emissão da apólice deverá ser precedida de proposta escrita com a declaração dos elementos essenciais do interesse a ser garantido e do risco”.
Como o princípio é o da liberdade das formas (artigo 107), todas as regras que exigem forma para declaração de vontade devem ser interpretadas restritivamente, razão pela qual, aliás, não há regra de simetria de forma entre oferta e aceitação. Assim, a aceitação da seguradora admite qualquer forma, existindo apenas em tese a exigência da forma escrita para a oferta válida.
Todavia, mesmo a regra sobre a forma da proposta é relativizada. A doutrina e a jurisprudência dominantes interpretam o artigo 759 como uma garantia que a seguradora pode dispensar, já que é em favor da avaliação adequada do risco que a regra foi estabelecida.
Portanto, não há no Código Civil qualquer comando que exija forma específica para a formação do contrato de seguro — seja a proposta, seja a aceitação — razão pela qual a doutrina e a jurisprudência (e a própria Susep) consideram o seguro um contrato consensual.
A circular proposta pela Susep cria uma exigência nova no sistema, algo além do que qualquer ato administrativo poderia fazer: tipificam-se as condutas da seguradora que podem ser interpretadas como aceitação do seguro — a emissão da apólice ou certificado individual (I) ou a cobrança do prêmio (II).
Segundo a minuta de circular, um e-mail ou telefonema da seguradora celebrando o grande negócio que o segurado acabou de fechar, ou até mesmo a contabilização interna da operação, como já previa o artigo 1.433 do Código Civil de 1916, serão insuficientes para formação válida do seguro.
Evidentemente, não serão poucos os casos em que o segurado acreditará na validade do contrato, ainda que a aceitação da seguradora não siga a forma prescrita na circular — para não mencionar as situações de abuso. Em termos práticos, a situação tende a assemelhar-se à da franquia: o requisito de forma foi afastado pela jurisprudência por meio da boa-fé objetiva, mas ainda gera repercussões negativas. A maior parte dos casos de franquia julgados pelo STJ lida justamente com o desrespeito à forma imposta.
Assim, se a circular for eventualmente adotada, um contrato tipificado no Código Civil como consensual torna-se formal, ao arrepio dos artigo 107 e 759, trazendo todos os inconvenientes da forma prescrita ao contrato de seguro.
2) Artigo 111 do Código Civil: Por fim, a aceitação pelo silêncio. Dispõe o artigo 111 do Código Civil que “o silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa.”
O Código Civil permite que o silêncio seja interpretado como aceitação, desde que: 1) a relação entre as partes ou a prática comercial do setor econômico assim permitam inferir; e 2)não haja regra que exija forma específica para a declaração. Estamos diante de mais uma regra sobre a forma do negócio que privilegia a escolha do declarante pela via que for mais conveniente — até a omissão.
Há diversos casos em que o Código Civil considera o silêncio como manifestação de vontade:
“Artigo 539 — O doador pode fixar prazo ao donatário, para declarar se aceita ou não a liberalidade. Desde que o donatário, ciente do prazo, não faça, dentro dele, a declaração, entender-se-á que aceitou, se a doação não for sujeita a encargo”.
“Artigo 432 — Se o negócio for daqueles em que não seja costume a aceitação expressa, ou o proponente a tiver dispensado, reputar-se-á concluído o contrato, não chegando a tempo a recusa”.
Segundo as regras citadas, se o donatário não se manifestar sobre a doação, e esta for pura, considera-se o contrato celebrado apenas com a manifestação do doador, e, se as partes tiverem dispensado a aceitação expressa ou o costume (entre as partes ou do mercado) é não aceitar expressamente, o silêncio do oblato será considerado aceitação.
Para além das situações legais expressamente previstas, o mercado de seguro é o exemplo por excelência de aceitação pelo silêncio. Ou seja, os usos do setor — a prática do mercado — exigem da seguradora uma manifestação expressa recusando a proposta de seguro no prazo de 15 dias. Essa prática foi documentada na circular Susep 251/2004 — a que poderá ser revogada por esta minuta —, e existe desde, ao mínimo, os anos 1940.
Indo contra o próprio mercado, a minuta de circular da Susep dispõe que, passado o prazo previsto, a proposta “perderá validade” (melhor dito: deixará de ser obrigatória), e que, para seguros internacionais, valerá como recusa (artigo 4º, §3º).
Criando essas limitações temporais, a minuta pretende inverter o costume do mercado e, pior, afastar a incidência do artigo 111, tornando sem efeito a aceitação pelo silêncio que não esteja conforme o prazo arbitrariamente fixado.
Há outros vícios que merecem reflexão, como o excesso ao próprio poder regulamentador da Administração (CNSP e Susep) no que diz respeito aos contratos de seguro. Mas isso é assunto para outro artigo.