Dona Rosa Maria de Jesus tem 65 anos, é aposentada e vive só. Ela sofre de uma série de problemas crônicos de saúde característicos da terceira idade e precisa de medicamentos de alto custo. Dos quase R$ 800 que ganha mensalmente da Previdência Social, mais da metade ela deixa na farmácia do seu bairro. Ela só não gasta todo o seu parco salário com remédios porque consegue gratuitamente alguns dos medicamentos prescritos por seu médico junto ao programa federal de distribuição gratuita de remédios, o Farmácia Popular.
O caso Rosa Maria é um exemplo fictício. Mas na vida real, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ela personifica um dado alarmante: os gastos com a compra de medicamentos no Brasil correspondem a 48,6% da despesa média mensal com saúde das famílias. Nas famílias com menores rendimentos, como é o caso de Rosa Maria, o peso dos medicamentos chega a ser de 74,2% sobre o orçamento. No grupo de pessoas com maiores rendimentos, este percentual também é elevado e atinge 33,6% da renda familiar.
O acesso a medicamentos no Brasil é um dos mais caros do mundo: ele está acima de 37 países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e do grupo dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Diante da perspectiva iminente de que a população brasileira está em acelerado processo de envelhecimento, o assunto ganha a cada dia contornos urgentes em busca de soluções para a reversão deste quadro. Por esta razão, a IT Mídia convidou representantes do setor para discutir a relação entre a falta de acesso e o alto custo dos medicamentos. Estiveram presentes o professor e vice-coordenador do grupo de pesquisa Regulação Econômica e Estratégias Empresariais da PUC-SP, Eduardo Perillo, o diretor de assuntos econômicos da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), Marcelo Liebhardt, e o diretor da Associação Brasileira das Empresas Operadoras de PBM (Programa de Benefício de Medicamento), Pierre Schindler. Para compor a mesa, a IT Mídia também quis ouvir a indústria farmacêutica e apesar de convidar alguns representantes, não obteve retorno positivo.
Gargalo tributário
Ao contrário da maioria absoluta dos países do mundo, no Brasil, mais de 70% dos medicamentos são comprados exclusivamente pela população, onerando fortemente a sociedade. As compras públicas, ainda que crescentes, correspondem a apenas cerca de 20% de tudo que é comercializado. Os planos e seguros de saúde, embora beneficiem quase 50 milhões de pessoas, de acordo com o último rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), obrigam as operadoras a ofertarem medicamentos em dois casos durante a internação hospitalar e na quimioterapia oncológica ambulatorial.
Uma série de fatores contribui para o elevado preço dos remédios no Brasil. O principal e mais inexorável destes motivos é a carga tributária incidente sobre esses produtos, que no Brasil chega em média a 33,9% do preço final do medicamento. Enquanto isso, a média mundial de tributos sobre remédios é de 6,3%.
Há quem diga que o índice global de tributos e taxas que recaem sobre o tratamento completo de um doente se aproxima de 50%. Um trabalho realizado a pedido da Associação da Interfarma identificou 86 tributos e taxas ao longo de toda cadeia de produção dos remédios.
Perillo, um dos organizadores do trabalho que culminou com a publicação do livro “Tributos e Medicamentos”, afirma que existem impostos invisíveis e que no final das contas, ninguém tem a menor ideia de quanto se paga de tributo na conta final hospitalar. “Eu imagino que não deve ficar muito abaixo dos 50%”, afirmou o especialista.
Um dos impostos que mais pesa sobre o valor final dos medicamentos é o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). No Estado de São Paulo, por exemplo, esse imposto é de 18% e, no Rio de Janeiro, 19%. Os tributos federais PIS e Cofins participam com outros 12% sobre o preço final dos remédios e engrossam a lista dos principais vilões do alto custo dos medicamentos no Brasil.
Liebhardt acredita que a guerra tributária envolvendo os Estados dificulta a discussão sobre a estrutura tributária do ICMS. O executivo conta que a associação vem fazendo uma espécie de peregrinação junto aos governadores de Estado no sentido de incentivá-los a reduzir a carga tributária, a exemplo do que fez o governo do Paraná, que baixou o ICMS de 18% para 12% e viu como consequência dessa medida um aumento na arrecadação devido ao maior consumo por parte da população.
Durante o debate, Liebhardt afirmou que a indústria farmacêutica tem todo interesse na desoneração tributária da cadeia de produção de medicamentos e que algumas iniciativas já foram realizadas para tentar desatar este nó. Segundo ele, há alguns anos, a Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias (Abrafarma) conseguiu reunir 1,5 milhão de assinaturas que ratificavam o desejo de redução dos impostos e tributos sobre os remédios. “Isso foi levado ao governo, houve um aceno de que isso seria olhado com carinho, mas nada aconteceu”, contou o executivo.
Uma nova tentativa de redução dos tributos está sendo alinhavada no âmbito político. Em abril deste ano, foi lançada na Câmara dos Deputados a Frente Parlamentar para a Desoneração dos Medicamentos. O presidente da frente, deputado Walter Ihoshi (PSD-SP), disse que o grupo foi montado para tentar isentar os medicamentos do elevado volume de que hoje incide sobre esses produtos e faz com que o consumidor seja um dos principais prejudicados.
Segundo Ihoshi, a frente já conta com mais de 200 parlamentares entre deputados e senadores. Ele apontou que, apesar de existirem outras frentes militando na área da saúde no Congresso, o grupo terá foco na redução de impostos. Além da atuação em âmbito federal, o parlamentar afirmou que haverá frentes parlamentares estaduais para articular a desoneração dos medicamentos.
“A frente é um espectro amplo dessa cadeia. A indústria e a cadeia farmacêutica contêm inúmeros participantes. Hoje, tem 80 mil farmácias no Brasil, centenas de distribuidores e centenas de fabricantes de medicamentos. Essa cadeia tem pleiteado junto ao Congresso a redução da carga tributária, mas o esforço é muito grande. O trabalho é gigantesco”, avaliou o representante da Interfarma.
Para Perillo, um dos grandes entraves para a redução da carga tributária sobre medicamentos é a falta de vontade política. “Nenhuma das três instâncias do governo quer desonerar. Esse é o primeiro muro a transpor”, declarou. Na avaliação dele, a efetiva articulação da cadeia produtiva no sentido de pressionar e fazer lobby para a defesa desta bandeira junto ao Congresso Nacional “é um trabalho hercúleo”. “É uma articulação política complexa e dos diversos setores produtivos. Isso demora”, opinou.
Perillo chama a atenção para o crescimento da arrecadação fiscal no período entre 2005 e 2011 como um dos argumentos que pode ser utilizado para convencer o governo a desonerar a cadeia produtiva de medicamentos. Com a redução da evasão fiscal, o governo viu sua eficácia e eficiência aumentar no recolhimento de tributos. “O governo foi capaz de recolher mais imposto devido e ficou mais barato recolher por causa da introdução de práticas eletrônicas de fiscalização.
O governo se entupiu de receber impostos. Era lógico ter uma taxa elevada de tributos, porque havia grande evasão fiscal, mas agora a situação é outra, então, dá para baixar”, avaliou.
Ele também destaca um curioso movimento de transferência de divisas dentro do próprio governo, que ao exercer seu poder de compra de medicamentos em larga escala acaba transferindo recursos originários do Ministério da Saúde para o Ministério da Fazenda. “Parte do dinheiro passeia pelos sistemas fiscais. O governo, nos três níveis, não tinha a menor ideia da quantidade de imposto que eles próprios pagam”, explicou, ao se referir que o assunto foi elucidado no âmbito da administração pública, após a apresentação do estudo que deu origem ao livro sobre o sistema de tributação de remédios no Brasil.
Países com sistema de saúde públicos parecidos com o brasileiro, como os casos do Reino Unido e Canadá, não tributam ou o fazem muito pouco sobre medicamentos prescritos. “Nós temos um sistema publico de saúde que tributa pesadamente os medicamentos, mesmo aqueles que são prescritos. Isso é uma alavanca importante na argumentação com o governo”, sustentou Perillo.
AlternativaUma das alternativas para se aumentar o acesso da população aos medicamentos seria a expansão do Programa de Benefício em Medicamentos (PBM) por parte das empresas privadas. O subsídio concedido pelos empregadores para a compra de remédios já beneficia 2,5 milhões de brasileiros.
Schindler, da Associação Brasileira das Empresas Operadoras de PBM, afirmou durante o debate, que uma pesquisa realizada com 130 empresas, que representam 15% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, apontou que somente 30% delas pagam remédios para seus funcionários.
Segundo ele, 87% das empresas que ainda não aderiram à prática, bastante comum nos Estados Unidos, o fariam caso houvesse algum tipo de incentivo fiscal, como ocorre, por exemplo, com o Programa de Alimentação ao Trabalhador (PAT), que deixa as empresas abaterem parte do seu Imposto de Renda em troca do benefício. “Existem projetos no Congresso para se criar o Programa de Medicamento do Trabalhador”, contou Schindler.
Para ele, outra saída seria os próprios planos de saúde começaram a cobrir os custos com medicamento. “O governo gostaria disso. A ANS tentou fazer isso nos últimos anos”, disse Schindler. Contudo, ele ressaltou que as operadoras relutaram em promover uma mudança compulsória porque o governo não oferece garantias à operadora de que ela poderá repassar o custo ao consumidor. “O governo precisa incentivar a operadora. Nos Estados Unidos, 80% da venda dos medicamentos passa pela dispensação das PBMs”, explicou o diretor da associação.
Carga pesadaNo Brasil, a carga tributária incidente sobre esses produtos, que chega em média a 33,9% do preço final do medicamento. Enquanto isso, a média mundial de tributos sobre remédios é de 6,3%.
O acesso a medicamentos no Brasil é um dos mais caros do mundo: ele está acima de 37 países integrantes da (OCDE) e do grupo dos Brics.