Toda vez que um cidadão com plano de saúde é atendido pelo SUS, a operadora tem de ressarcir o Ministério da Saúde. O que nem sempre acontece. "O que as empresas de saúde suplementar fazem é vender uma vaga no SUS [Sistema Único de Saúde] para aqueles que podem pagar planos de saúde", define a advogada do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Joana Cunha.
O Idec acaba de realizar um levantamento, com base em dados divulgados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que mostra que do R$ 1,6 bilhão cobrado das operadoras pela ANS para ressarcimento ao SUS, apenas 37% (cerca de 621 milhões) foram pagos. Enquanto isso, 19% (mais de R$ 331 milhões) foram parcelados e 44% (mais de R$ 742 milhões) não foram nem pagos nem cobrados. Isto é, 63% das dívidas ainda não foram quitadas pelas operadoras.
Segundo os dados divulgados pela ANS e compilados no levantamento do Idec, todo o histórico de ressarcimento ao SUS começou a ser contado em setembro de 1998. Segundo o Idec, foram notificados sobre o levantamento, além da ANS, o Ministério Público Federal (MPF), a Secretaria Nacional do Consumidor (do Ministério da Justiça) e a Associação do Ministério Público do Consumidor.
Segundo Fabiano de Moraes, procurador da República e coordenador do grupo de trabalho sobre planos de saúde do MPF, a jurisprudência é favorável ao ressarcimento do SUS. "A lei prevê o ressarcimento. Todas as ações de operadoras que chegaram ao Superior Tribunal de Justiça, que reclamavam contra a obrigatoriedade do ressarcimento, foram perdidas, consideradas improcedentes."
De acordo com a lei número 9.656/1198, o ressarcimento ao SUS consiste na obrigação legal das operadoras de planos privados de restituir as despesas do SUS no eventual atendimento de seus beneficiários, que estejam cobertos pelos respectivos planos. Para Moraes, é "vísivel que muitas operadoras não cumprem o ressarcimento" determinado pela ANS. "Agora, com a notificação do levantamento pelo Idec, o MPF vai apurar com mais profundidade para verificar quais os meios utilizados pela agência para fazer a cobrança, se são adequados. Vamos fiscalizar a atuação da agência reguladora", explica o procurador da República.
"Esses 44% devidos, provavelmente, serão inscrito na dívida ativa e serão pagos a fundo perdido. Mas, enquanto isso, essas empresas vão continuar atuando e seus clientes pagarão sem receber o serviço adequadamente. Esse é um dos grandes empecilhos ao direito à saúde no País, que conta com a lentidão da ANS como órgão regulador", ressalta a advogada do Idec.
O órgão de defesa do consumidor afirma há anos que ocorre uma mercantilização da saúde no Brasil, fato que prejudica tanto o sistema público, quanto o suplementar. "Um pessoa que tem um plano privado, do sistema suplementar, não deveria em hipótese alguma ter de recorrer ao SUS, porque as operadoras de saúde têm de prestar o serviço para o qual são pagas", afirma Joana.
Para o Idec, as negativas irregulares por partes dessas empresas são constantes. "Quem é segurado e tem dinheiro sobrando, paga por uma situação de emergência ou tratamento particular e depois cobra do plano de saúde. Quem não tem condições, volta para o SUS. A ANS precisa rever o modelo existente e fiscalizar melhor a conduta do setor suplementar. As empresas não podem receber as mensalidades dos segurados, negar o atendimento de forma inadequada e, consequentemente, onerar os cofres públicos."
Em nota, a ANS informa que vem aprimorando e dando mais agilidade à identificação e cobrança dos processos de ressarcimento ao Sistema Único de Saúde. "Como resultado, houve um aumento expressivo nos valores obtidos com o ressarcimento nos últimos anos. De janeiro a novembro de 2014, a ANS arrecadou R$ 335,74 milhões, volume 82% maior do que foi arrecadado ao longo do ano inteiro de 2013, quando foram obtidos R$ 183,2 milhões através do ressarcimento. Nos últimos quatro anos, (2011 a novembro de 2014), o valor do ressarcimento chegou a R$ 673,66 milhões."
A agência informa que as operadoras que não pagam os valores devidos têm a cobrança encaminhada para inscrição em dívida ativa da União e no cadastro informativo de créditos não quitados do setor público federal (CADIN). "A inscrição no CADIN impede a contratação com o poder público. Já a inscrição em dívida ativa é uma fase prévia à execução judicial do débito. Em função disso, a operadora não consegue obter certidão negativa de débitos perante a Agência e fica desabilitada para o Programa de Conformidade Regulatória, que dá incentivos às operadoras em situação regular junto à ANS."
Em 2014, até o mês de novembro, R$ 189,64 milhões foram encaminhados para a dívida ativa. De 2011 a novembro de 2014, este valor foi da ordem de R$ 510,71 milhões, recursos que estão sendo cobrados via Judiciário, pela União. Consultada, a Advocacia-Geral da União (AGU) informou que ainda não atua nos processos porque eles não estão em fase judicial, apenas na fase administrativa.
Do total de operadoras que constam na listagem (última atualização feita em janeiro, com dados de dezembro de 2014), 825 estão com registro ativo na ANS atualmente. Deste conjunto de operadoras ativas, 441, ou seja, 53,4% possuem índice de adimplência superior a 70%. Questionada sobre o fato de algumas empresas terem registro suspenso temporariamente, a ANS informou que essas inativas até dezembro podem voltar à ativa, dependendo do caso. É comum que empresas tenham a atividade suspensa por irregularidades de atendimento, por exemplo, mas depois de adequação voltarem a atuar.
A Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge, entidade que representa as operadoras de planos de saúde) declarou em nota que as operadoras associadas vêm cumprindo as normas vigentes do setor de saúde suplementar, inclusive aquelas relativas ao ressarcimento ao SUS. "O cumprimento dessas normas não inviabiliza eventuais questionamentos das operadoras relativos aos valores que estão sendo cobrados, uma vez que a cobrança pode ser improcedente."
A Abramge destaca ainda que o ressarcimento ao SUS está sendo discutido em Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin nº 1931), acatada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
A ANS divulgou recentemente um mapeamento inédito sobre as operações de ressarcimento ao SUS. A análise compreende as notificações realizadas entre 2008 e 2012 e mostra o perfil dos usuários e procedimentos realizados, oferecendo um panorama detalhado das situações em que as pessoas com planos de saúde mais recorreram ao SUS no período de 2008 a 2012.
Quanto ao caráter do atendimento, o mapa mostra que os procedimentos de urgência e emergência estiveram no topo da procura no período de 2008 a 2012, superando em 2,25 vezes o total de procedimentos eletivos. Do total de 1,2 milhão de Autorização de Internação Hospitalar (AIH) notificadas às operadoras, 68,46% dos atendimentos em beneficiários de planos de saúde foram realizados pelo SUS em caráter de urgência e emergência e 30,32 % em caráter eletivo. A maioria dos atendimentos eletivos (via agendamento prévio) ocorreu em instituições de referência.
Entre os procedimentos mais procurados, partos (normal e cesárea) ocuparam o primeiro lugar, seguido de tratamento para pneumonia ou gripe e diagnóstico e/ou atendimento de urgência em clínica médica. Para a agência, as informações mapeadas servem de ajuda para conhecimento da realidade das pessoas e intervir no sistema regulatório para que as operadoras de planos de saúde atendam com eficiência a todos os seus beneficiários, melhorando a assistência à saúde prestada pelo sistema privado.
Outro questionamento do Idec à ANS critica a maneira como os dados de prestação de contas do ressarcimento ao SUS foi apresentada pela agência. "Os dados foram publicados em arquivo em formato fechado, em uma lista de 1.500 linhas, em formato pdf. Isso contraria o artigo 8º da Lei de Acesso à Informação (LAI), que determina que as informações de autarquias e agente públicos sejam divulgadas em formato aberto [como o excel, por exemplo]. O pdf impede a filtragem e análise das informações, ao contrário do que determina a lei. Que cidadão ou acadêmico consegue avaliar uma lista dessas?", indaga a advogada do Idec.
O artigo 8º da Lei de Acesso à Informação determina que órgãos públicos devem divulgar em seus sites, independentemente de solicitação, informações de interesse coletivo ou geral, possibilitando a gravação de relatórios eletrônicos em formato aberto, tais como planilhas e texto, de modo a facilitar a análise das informações.
A ANS reafirma seu compromisso com a transparência e esclarece que está em plena conformidade com a Lei de Acesso à Informação e com os mecanismos de acessibilidade que orientam a gestão pública. "Em decorrência da LAI, a Agência publicou a Resolução Normativa nº 298, de junho de 2012, que dispõe sobre os mecanismos de transparência ativa e passiva, institui o Serviço de Informação ao Cidadão (SIC), classifica em graus de sigilo informações em poder da ANS e dispõe sobre o seu tratamento. O Sistema Eletrônico do SIC permite que qualquer pessoa, física ou jurídica, encaminhe pedidos de acesso à informação, acompanhe os prazos, receba a resposta da solicitação realizada para órgãos e entidades do Executivo Federal e interponha recursos", afirma a agência.
O Idec destaca que só teve acesso aos dados abertos via pedido de acesso à informação pelo Sistema Eletrônico do Serviço de Informações ao Cidadão do governo federal. "A LAI é clara, é preciso fazer a publicização em aberto. Com esse tipo de conduta, a ANS tira a eficácia da regra, além de desconsiderar o conceito de publicidade da administração pública [transparência], que está no artigo 37 da Constituição Federal", afirma Joana.
"Não houve qualquer omissão ou violação de legislação na disponibilização desses dados, ao contrário, eles estão acessíveis a todos os cidadãos e, quando requisitados, como feito pelo referido órgão, são repassados em formatos diferenciados", responde a ANS em nota.
Em junho de 2014, a agência passou a divulgar em seu portal, em atitude proativa, o percentual de adimplência das operadoras com o ressarcimento, que tem atualização periódica, seguindo as diretrizes estabelecidas na Agenda Regulatória 2013/2014. Essa medida objetiva justamente dar mais transparência ao processo de cobrança do ressarcimento ao SUS, pois a consulta indica se a operadora está em dia com o ressarcimento.