O advogado Ernesto Trizulik, do
Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS), enviou em 16 de
fevereiro para a Superintendência de Seguros Privados (Susep) uma manifestação pública
sobre a Minuta de Circular Susep sobre seguros de riscos
operacionais.
O documento aponta “dois graves
problemas” na minuta de circular sobre “regras e critérios para a
elaboração e a comercialização de planos de seguro do ramo Riscos
Nomeados e Operacionais e dá outras providências”. A consulta
pública se encerra no dia 21 de fevereiro.
Veja a íntegra
“Manifestação Pública sobre a Minuta
de Circular SUSEP sobre seguros de riscos operacionais
Consulta Pública 01/2017
1. Em 2008, com a regulamentação da LC
126/2007, foi extinto o monopólio do IRB Brasil Resseguros S.A. o
antigo Instituto de Resseguros do Brasil, criado em 1939 e
privatizado em 2013.
Naquela oportunidade, a sociedade
civil – pessoas e empresas – não foram merecedoras de regras de
proteção nos contratos de seguro que pudessem, na nova ordem,
evitar fenômenos como o do chamado “risco declinável” – o IRB
monopolista era obrigado a aceitar os riscos brasileiros, exceto se
isso contrariasse o interesse nacional ou fosse tecnicamente
impossível, mas os resseguradores livres, incluído o IRB pós
abertura, seguem apenas seu próprio “apetite” –, assim como também
não foram criadas regras para garantir, ao menos, a manutenção dos
conteúdos dos contratos de seguro.
Se não temos mais o IRB monopolista
atuando como instrumento da política estatal, e sim mais um
ressegurador que concorre livremente com seus congêneres, era
esperado que, em algum momento, o Congresso Nacional cuidasse de
amparar a sociedade com normas capazes de evitar que humores e
apetites determinem a oferta de seguro e resseguro no mercado e
manipulem indiscriminadamente o conteúdo dos seguros oferecidos que
vem tendendo murchar, sendo evidentemente menos protetivos do que
os de outrora.
No Congresso, muito lentamente – há 13
anos – vem sendo gerida aquela que se espera seja a primeira lei de
contrato de seguro do país: o PL 3.555/2004, que só veio a ser
aprovado na Câmara dos Deputados no final de 2016.
2. Enquanto isso, a Superintendência
de Seguros Privados, autarquia federal submetida ao Ministério da
Fazenda, continua editando regras sobre contratos de seguro que
reduzem, ainda mais, as já bastante emagrecidas coberturas
oferecidas aos brasileiros.
O Instituto Brasileiro de Direito do
Seguro – IBDS já teve oportunidade de se manifestar a respeito das
normas produzidas pela SUSEP sobre seguros de riscos de engenharia
(Circular Susep nº 540/2016), evidenciando os perigosos movimentos
tendentes à redução das proteções securitárias.
Recentemente a SUSEP colocou em
consulta pública, que encerrará no próximo dia 21 de fevereiro de
2017, a próxima terça-feira, minuta de circular sobre “regras e
critérios para a elaboração e a comercialização de planos de seguro
do ramo Riscos Nomeados e Operacionais e dá outras
providências”.
Existem aí dois graves problemas.
3. Em primeiro lugar, para garantir a
qualidade e a segurança das normas sobre contratos de seguro, a
Constituição Federal dispõe que a competência para disciplinar
contratos de seguro é da União, a qual se desincumbe disso por meio
do Poder Legislativo. Portanto, a SUSEP, quando estabelece regras
de contrato de seguro, matéria do chamado direito privado (civil e
comercial ou empresarial), assim como quando ela dispõe sobre
normas que possam orientar a “política de seguro” está contrariando
frontalmente o art. 22, incisos I e VII da Constituição brasileira:
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I –
direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário,
marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; (…) VII – política
de crédito, câmbio, seguros e transferência de valores.”
Sabe-se que a SUSEP invoca o artigo
36, letras “b” e “c” do Decreto-lei nº 73/66 para justificar seus
atos normativos.
Acontece que o primeiro dispositivo
apenas autoriza à SUSEP, em consonância com a Constituição, “baixar
instruções e expedir circulares relativas à regulamentação das
operações de seguro, de acordo com as diretrizes do CNSP”, que é o
Conselho Nacional de Seguros Privados. Esse órgão normativo do
chamado Sistema Nacional de Seguros Privados, no inc. IV do art. 32
do referido Decreto-lei somente recebeu competência para “fixar as
características gerais dos contratos de seguros.” Ora, fixar
características gerais é tudo menos definir conteúdos
contratuais.
O segundo dispositivo que a SUSEP
costuma utilizar, a letra “c” do art. 36, onde está escrito que ela
teria competência para “fixar condições de apólices, planos de
operações e tarifas a serem utilizadas obrigatoriamente pelo
mercado segurador nacional” não pode ser lido em confronto com as
mencionadas regras da Carta Magna, nem com o disposto no inciso II
do seu artigo 6º, onde o princípio da legalidade está colocado nos
seguintes termos: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei”.
Como se vê, entender que “fixar
condições de apólices” significa dispor por meio de ato normativo
sobre o próprio conteúdo obrigacional, enfim, dizer o direito que
deve regular a relação contratual entre privados, é evidentemente
inconstitucional.
4. Em segundo lugar, a demonstrar o
perigo que é deixar que regras não produzidas constitucionalmente –
pelo Legislativo – regulem as relações contratuais, nota-se que a
SUSEP, na minuta agora colocada em discussão, se direciona em
desfavor dos direitos dos segurados e seus beneficiários,
contrariando, neste passo, o art. 2º do referido Decreto-lei 73/66,
onde se determina que “o controle do estado” deve ser exercido “no
interesse dos segurados e beneficiários dos contratos de
seguro”.
Vejamos quais são os pontos mais
críticos da circular examinada que, acaso não tratados
adequadamente, acabarão por confundir e mal orientar a todos, até
mesmo os versados em seguro.
4.1. No art. 2º da circular em
discussão o objeto de sua pretendida incidência está apresentado do
seguinte modo: “Consideram-se Riscos Nomeados e Operacionais
aqueles que, por sua estrutura, complexidade e vultosidade,
necessariamente demandam a contratação de cobertura de resseguro,
sendo destinados a segurados cujos ramos de atividade estejam
relacionados com a indústria, o comércio ou a prestação de
serviços.”
Encontra-se aí relevante problema de
ordem conceitual. A norma mistura tipo de contrato em razão de sua
técnica de fixação de conteúdo (“riscos nomeados”) com modalidade
de seguro (“riscos operacionais”). Tudo isso é também misturado com
a estrutura – o que entendemos como composição do prêmio -,
complexidade e vulto do seguro (por sinal, a palavra “vultosidade”
não está sequer dicionarizada; usa-se “vulto”), além do tipo de
atividade do segurado.
Os chamados seguros de riscos nomeados
são todos aqueles que apresentam a cobertura contratada mediante
discriminação dos riscos cobertos, de danos ou mesmo pessoais
(vida, acidentes), de vulto ou microsseguros, que exigem a
contratação de resseguro ou não.
Assim, basta o seguro omitir um risco
que não se compreenda necessariamente na cobertura, para que esse
risco fique fora da obrigação de garantia da seguradora. A própria
minuta oferecida a debate pela SUSEP reconhece essa definição no
art. 4º, I.
Mas, voltemos ao tema. Além desse tipo
de contrato em razão do modo pelo qual são apresentados ou
delimitados os riscos cobertos, existem seguros, que igualmente
podem dizer respeito a interesses patrimoniais ou à pessoa, a
interesses vultosos ou mínimos, mas que garantem todos os riscos
que não tenham sido excluídos da cobertura, expressa e claramente.
São os chamados seguros contra todos os riscos, em inglês, “all
risks”.
Já seguros operacionais são seguros
patrimoniais (“property insurance”). Por outro lado, seguro de
risco operacional é uma modalidade de seguro que garante interesses
de segurados que exercem atividades econômicas. Estas podem ser de
grande ou de pequeno porte. Definir a modalidade operacional como
sendo apenas destinada aos seguros de vulto é discriminatório em
desvalia dos segurados que têm operações não vultosas e,
igualmente, necessitam de garantia de seguro para a proteção de
seus interesses. De todo modo, o problema da regra tem origem em
norma, quando se criou o ramo RNO, misturando tipo de contrato em
razão de técnica de cobertura com modalidade de cobertura em razão
do tipo de interesse segurado.
4.2. Em seguida, a minuta da circular,
no inciso II do parágrafo único do artigo 2º, utiliza a expressão
“dano material” e o distingue das perdas financeiras que dele
decorram numa acepção particular do setor segurador, que é
diferente daquela que a melhor técnica jurídica recomenda.
Primeiro, deve-se distinguir dano de prejuízo. O dano não é
indenizado, mas sim o prejuízo. Mas isso é rigor demasiado! Em
seguida, deve-se ter em conta que dano material é sinônimo de dano
patrimonial, englobando tanto o chamado dano emergente quanto o
lucro cessante. Além do lucro cessante, que decorre diretamente do
dano material, outros prejuízos financeiros podem decorrer, tanto
do emergente quanto do lucro cessante, como o chamado dano
econômico indireto.
Assim, quando a regra fala “além dos
danos materiais cobertos, as perdas financeiras decorrentes desses
danos materiais”, pode-se entender que os seguros estariam
garantindo danos materiais (= danos emergentes + lucros cessantes)
mais outras perdas financeiras, que certamente não é a intenção da
SUSEP, pois as seguradoras fogem do dano financeiro que é
consequência indireta da realização do risco de danificação ao
patrimônio.
Há, porém, um ponto positivo, a regra
não utilizou dessa vez a infeliz expressão “dano físico à
propriedade tangível”, expressão problemática transplantada de
outras culturas que veio servindo para reduzir a pós as garantias
de danos patrimoniais no Brasil.
4.3. No artigo 4º, II da minuta
examinada, o seguro de risco operacional é limitado à cobertura
contra todos os riscos (o ato normativo optou por abandonar a
língua pátria e escreveu “all risks”). Embora isso seja positivo,
há na redação a mistura entre tipo de técnica contratual para
delimitar os riscos com modalidade de seguro segundo o tipo de
interesse garantido pelo seguro.
4.4. Mas, o principal problema dessa
regra é que os “all risks” se transformam em “very poor risks”.
Com efeito, a norma minutada restringe
“todos os riscos” a apenas aqueles que tenham sido provocados por
“causa externa”. Ao trocar a ideia de fato acidental por “causa
externa” a norma extradita das nossas apólices as coberturas por
fadiga de materiais, as implosões, as deteriorações não gradativas,
manifestações de erros de projeto, enfim uma verdadeira montanha de
sinistros que sempre estiveram cobertos nos seguros de riscos
operacionais.
Apenas para se ter uma ideia do que
isso pode representar, lembre-se que o maior sinistro terrestre da
nossa história, a ruptura do coletor de pó do alto forno 3 da Usina
Presidente Vargas, em Volta Redonda, ocorrido em 2006, foi causado
por vício intrínseco decorrente de erro de projeto. Esse sinistro
que foi indenizado voluntariamente pelas seguradoras e
resseguradores por mais de meio bilhão de dólares ficaria sem
cobertura ante o inciso II do art. 4º.
4.5. O §1º do artigo 4º contém mais um
problema grave. Ele estabelece que as seguradoras poderão incluir
“cláusulas que especifiquem a abrangência e limitação das
coberturas do plano, a fim de proporcionar melhor entendimento dos
riscos cobertos”. Ora, as seguradoras são obrigadas a fazer isso
que a norma transforma em faculdade. Se não fizerem, além de
violarem o Código de Defesa do Consumidor que se aplica aos seguros
de grandes riscos, segundo a jurisprudência majoritária. De
qualquer modo estarão deixando de esclarecer o conteúdo da
cobertura e pagarão caro por isso ante a regra saudável do art. 423
do Código Civil, segundo a qual “quando houver no contrato de
adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a
interpretação mais favorável ao aderente”.
4.6. Finalmente, merece crítica a
regra do §4º do artigo 6º. Ali está escrito que os contratos que se
encontrem em vigor e não estejam de acordo com a circular “poderão
vigorar, apenas, até o término de sua vigência”.
Ora, além de ser jogada às traças a
recondução tácita do contrato expressamente prevista em lei (art.
774 do Código Civil), há seguros pactuados para serem renovados ou
prorrogados de conformidade com certas condicionantes. Alguns,
inclusive, são contratados com renovação necessária prevista em
outros contratos. A Constituição Federal no inciso XXXVI, do art.
5º outorga a seguinte garantia fundamental: “a lei não prejudicará
o direito adquirido, o ato jurídico perfeito”. O que nem a lei
pode, como poderia pretender o ato normativo?
Como se vê, é sem tempo o advento de
uma lei de contrato de seguro, com a liberação da SUSEP da difícil
tarefa de regular direitos contratuais através de normas que não se
depuram com o processo legislativo e o tempo de maturação que as
leis costuma demandar.”