Quando tinha 19 anos, Nínive Loriane
Ferreira engravidou do namorado. Na época, ela já trabalhava na
Unas Heliópolis – organização que reúne associações de moradores do
bairro – e, com a carteira assinada, veio o benefício do convênio
médico empresarial. Apesar da pouca idade, Nínive, já a responsável
financeira pela casa onde morava com a mãe, conta que levou adiante
a gravidez com muito amor e cuidado, fazendo o pré-natal no SUS,
porque o plano de saúde era novo e o prazo de carência não venceria
até a hora do parto. “Eu usava o convênio muito de vez em quando e
só para emergências, porque sabia que para isso não havia
carência”, lembra a moça, hoje com 28 anos. Por isso, não hesitou
em descer do ônibus que passava próximo ao Hospital Bosque da Saúde
quando, aos sete meses de gestação, começou a sentir dores muito
fortes na barriga. “Eu não sabia o que era, só sentia muita dor e
sabia que não estava na hora de o bebê nascer. Então desci e fui
para a emergência do hospital que estava mais próximo e que sabia
que era coberto pelo meu plano”, conta. Ao examiná-la, a médica
constatou que seria preciso internar imediatamente para um parto
prematuro. “Ela disse que não dava tempo de transferir a gente de
hospital e que nós dois corríamos risco de vida.” Nínive diz que,
ao mesmo tempo, o plano não autorizou o procedimento e o
administrativo do hospital informou que só internaria a gestante se
ela assinasse um contrato comprometendo-se a arcar com a dívida
hospitalar. “Eu não estava em condições de assinar, a essa altura
minha bolsa já tinha rompido, tinha passado muito tempo; e o pai do
bebê, desesperado e também sem saber o que fazer, acabou assinando
por mim.” O parto foi feito às pressas e o bebê prematuro, colocado
em uma incubadora, na UTI do hospital. “Me disseram que o
pulmãozinho dele não estava pronto, mas que ele ficaria bem”,
lembra Nínive, que foi mandada para casa algum tempo após a
cirurgia, enquanto seu filho permaneceu internado. “Eu tirava leite
e ia levar pra ele todo dia, mas fui muito maltratada no hospital o
tempo todo. Ninguém falava comigo direito, não me diziam o que ele
tinha. No terceiro dia, quando cheguei com o leite, fiquei sabendo
que ele estava sendo transferido para o Hospital das Clínicas
porque eu não tinha pago ainda nem metade dos R$ 10 mil que eles
estavam cobrando até então. Eles expulsaram meu filho, tiraram da
UTI e mandaram pro HC sem me avisar.” Ela conta que o bebê foi
internado no hospital público em estado grave e que após sete dias
a médica a chamou e deixou segurar seu filho no colo pela primeira
vez. “No dia 7 de setembro, logo depois disso, me ligaram dizendo
que ele precisaria de uma cirurgia porque estava com uma infecção
generalizada e que tudo aquilo estava acontecendo porque ele não
poderia ter sido transferido da UTI, sem oxigênio, sem cuidado
nenhum, como fizeram. Ele acabou falecendo. Era muito pequenininho,
não resistiu.” Nínive conta que o choque foi tão grande e ficou tão
abalada que, em luto, não pensou em tomar alguma providência contra
o hospital. “Só caiu a ficha quando recebi o processo do hospital,
dizendo que eu tinha que pagar a conta”, lembra. “Aí entrei com um
processo contra eles também. Eu ganhei o processo, mas eles
ganharam a causa contra mim porque na época eu ainda não tinha
advogado. Por causa disso, eu tenho um bloqueio na minha conta e no
meu nome, não posso alugar apartamento, não posso comprar nada até
meu advogado conseguir reverter a decisão. Na época eu fiquei
doida, minha revolta e tristeza foram muito grandes. Eles são os
culpados pelo meu filho ter morrido e ainda me processam. Esses
convênios tratam a gente que nem lixo.”
Histórias como a de Nínive não são
raras no universo dos convênios médicos no Brasil. Um indicador
disso é que em 2017 foram julgadas mais de 30 mil ações contra
planos de saúde somente no estado de São Paulo, segundo o
Observatório da Judicialização da Saúde Suplementar do Departamento
de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP. De acordo
com o levantamento, o volume de decisões é o maior já registrado na
história. Em 2011 foram julgadas 7.019 ações, ou seja, houve um
crescimento de 329% em sete anos. O Observatório apurou também que
entre 2011 e 2017 o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) julgou,
em segunda instância, mais causas envolvendo planos de saúde
(70.666 decisões) do que demandas relacionadas ao SUS – Sistema
Único de Saúde (53.553 decisões). A maioria das reclamações,
segundo o advogado e um dos autores do estudo Rafael Robba, se
refere à exclusão de coberturas ou negativas de atendimentos (40%
das decisões) e o segundo motivo (24% das decisões) envolve
reclamações sobre reajustes de mensalidades. No Instituto
Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), por exemplo, os
convênios médicos lideram o ranking de reclamações há seis anos
consecutivos. O Idec não identifica as empresas nesse ranking, mas
destaca que a maior parte das queixas (44,5%) está relacionada aos
reajustes abusivos nas mensalidades.
O caso do arquiteto Giancarlo
Morettoni Jr. se enquadra em um dos motivos citados pela pesquisa
do Observatório da Judicialização. Em 2015, ele foi diagnosticado
com mieloma múltiplo – um tipo de câncer de medula que afeta as
células plasmáticas. Como seu plano de saúde era relativamente novo
e ainda havia carência para internação, ele iniciou o tratamento
quimioterápico pelo SUS. No final de 2016, necessitando de
transplante de medula óssea e com as carências vencidas, buscou o
procedimento pelo convênio. “Em vez da autorização recebemos uma
notificação, em maio de 2017, dizendo que o contrato estava
cancelado”, conta sua companheira, Alexandra Morettoni. “Nós
ficamos muito assustados, fomos buscar respostas no convênio, que
nos tratou com muito descaso, dava informações vagas, quando dava,
e perdemos algum tempo nisso – tempo que é muito precioso para
alguém com câncer. Então, procuramos a ANS que nos informou que em
casos de planos empresariais o contrato poderia mesmo ser cancelado
por parte da operadora mas que ela deveria nos oferecer um plano
particular sem carências. Quando alegamos isso, a operadora disse
que estava com a migração suspensa e que isso se caracterizaria
nova venda”. Alexandra conta que enfim a família resolveu contratar
advogados, ainda que em dificuldades financeiras, e que apenas com
uma liminar do juiz o tratamento continuou e o transplante
aconteceu. “Protocolamos uma queixa na ANS [Agência Nacional de
Saúde Suplementar] e a resposta veio meses depois, apoiando o
convênio. Se ficássemos aguardando, mais meses teriam prejudicado o
tratamento dele. Desde o início fomos enganados, o tratamento foi
protelado, meses preciosos foram perdidos por causa de respostas
confusas e espera. É muito difícil para o paciente e para o
responsável entenderem o processo necessário para um tratamento de
mieloma múltiplo. Eu acreditava nas respostas que recebia do
convênio. Quando você está há meses num hospital entre a vida e a
morte, inconsciente, ou acompanhando alguém nessa situação, não tem
a menor chance de verificar tecnicamente se o que estão fazendo é
certo ou errado, não é tão simples. A atuação dos advogados foi
fundamental. Nós não conhecemos nossos direitos, mas os convênios
conhecem e os driblam muito bem.”
O advogado Leandro Souto da Silva, que atuou no processo de
Giancarlo e tem experiência em casos parecidos, diz que a
judicialização é tão forte que já existem entendimentos formados
sobre diversas matérias relacionadas aos planos de saúde. “O
Tribunal de Justiça de São Paulo tem súmulas de entendimento sobre
convênios, o STJ também. Quando a gente parte para o tribunal, já
vai geralmente com algum precedente porque já existem
entendimentos-padrão para as reclamações. Em alguns casos, o
convênio até tenta fazer um acordo, mas geralmente eles levam até o
fim. É curioso porque, se você pensar em telefonia, TV a cabo,
celular, se você pede para fazer portabilidade para outra
operadora, a sua operadora entra num desespero enorme para te
manter. O convênio não. Se você pede para mudar para outra
operadora, ele nem te procura, tanto faz, ele sempre vai ter
alguém. Porque é muita gente, porque é um mercado que movimenta
muito dinheiro, mas principalmente porque eles têm um respaldo que
vêm de cima.”
Para compreender melhor essa sensação de que “convênio pode tudo” e
de onde vem esse “respaldo”, é preciso falar em números grandiosos.
Hoje, no Brasil, mais de 47 milhões de pessoas utilizam planos de
saúde empresariais ou particulares. Isso corresponde a quase um
quarto da população. São 779 operadoras no país que movimentaram
mais de R$ 170 bilhões em 2017, segundo a ANS. Só para ter uma
ideia, no mesmo período, o governo federal brasileiro
disponibilizou R$ 125,3 bilhões para o Ministério da Saúde, R$ 44,7
bilhões a menos – lembrando que 70% da população brasileira depende
exclusivamente do SUS. Ainda de acordo com o IBGE, em 2015, 9,1% do
PIB foram gastos com saúde no país. Desse valor, 3,9% foram gastos
públicos e 5,2%, privados. Ou seja: atualmente a saúde suplementar
no Brasil, responsável por cerca de 30% dos atendimentos, movimenta
mais verbas do que a saúde pública gratuita e universal,
responsável pelo atendimento a 70% da população e, ainda, por uma
atenção básica que envolve vacinas e prevenção que atende também os
usuários de planos. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF)
finalmente decidiu que os planos de saúde devem pagar ressarcimento
ao SUS quando encaminham pacientes à rede pública – uma briga
antiga que já acumula mais de R$ 5,6 bilhões em dívidas. Para além
disso, é válido lembrar que uma das primeiras medidas de Michel
Temer ao assumir a Presidência em 2016 foi propor e aprovar a PEC
241, conhecida como a PEC do Teto de Gastos, que entre outras
coisas limita os investimentos em saúde durante os próximos 20
anos.
Além do grande volume de dinheiro que o mercado dos planos de saúde
movimenta, sua proximidade com as esferas de poder através de redes
de influência e lobbies é muito forte e existe desde a criação da
primeira lei, que completa 20 anos este ano, como explica o
professor e pesquisador da Faculdade de Medicina da USP Mário
Scheffer, que também faz parte da diretoria da Associação
Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco): “Os planos ficaram muito
tempo sem regulamentação. Dez anos depois da lei do SUS, só em 1998
é que se fez a primeira regulamentação, que foi a Lei 9.656. Era
uma terra de ninguém, um livre mercado, e houve uma grande
conjunção de interesses naquele momento, entidades de defesa do
consumidor, pacientes com patologias que eram excluídas dos planos,
como aids, doenças renais crônicas, os médicos insatisfeitos com a
baixa remuneração, o SUS querendo ressarcimento. Então, na década
de 1990 foi possível uma coalizão de interesses por uma
regulamentação, mas ela chegou muito ruim, é cheia de falhas. De
alguma forma definiu padrões de cobertura, critérios, garantias,
estipulou ressarcimento ao SUS – que nunca foi de fato cumprido – e
posteriormente criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar, em
2000. Essa legislação sofreu muito com o lobby das operadoras.”
A ANS, agência reguladora vinculada ao
Ministério da Saúde responsável pela “criação de normas, o controle
e a fiscalização de segmentos de mercado explorados por empresas
para assegurar o interesse público” – como explica seu site –, tem
sido criticada por órgãos como o Idec e a Abrasco desde sua
criação. “A ANS vai fazer 18 anos e é uma agência que desde sua
primeira gestão é contaminada, capturada por interesses desse
mercado que deveria regular. Esse é um grande problema que explica
essa insatisfação generalizada e práticas abusivas que não são
solucionadas. Me parece que a regulação é fraca e a ANS tem
demonstrado uma posição muito mais favorável ao mercado do que a
dos usuários e consumidores”, explica Scheffer. “E isso desde o
começo. A Solange Beatriz Palheiro Mendes, que foi diretora de 2000
a 2004, havia passado antes pela Superintendência de Seguros
Privados [Susep], onde foi diretora de 1995 a 2000; hoje é a
presidente da Fenasaúde, entidade representativa de planos de
saúde. Teve o Maurício Ceschin, que exerceu a Superintendência
Corporativa do Hospital Sírio-Libanês e foi presidente executivo da
Qualicorp e, em seguida, foi diretor presidente da ANS de 2009 a
2012. Em 2014 ele retornou como CEO da Qualicorp. Hoje ele preside
a Mantris, empresa de gestão em saúde corporativa. No governo
Dilma, o José Carlos de Souza Abrahão foi presidente da ANS de 2014
a 2017. Antes, foi presidente da Confederação Nacional de Saúde
[CNS], que representa hospitais e planos de saúde e autor da Adin
contra o ressarcimento ao SUS pelos planos de saúde que agora
finalmente o Supremo resolveu e disse que o ressarcimento ao SUS é
constitucional. Isso falando apenas do primeiro escalão. Se pegar a
porta giratória no segundo escalão, a lista é interminável. Essa é
uma história que vem de longa data, passa por vários governos”,
afirma. A advogada e pesquisadora do Idec Ana Carolina Navarrete
segue no mesmo tom: “O Idec tem uma publicação de 2007 em que já
apontava vários problemas na agência, sobre os planos individuais
sumirem [hoje representam cerca de 20% do mercado], sobre os
reajustes abusivos nas mensalidades. Tudo isso já estava apontado,
e a gente não viu uma tomada de decisões que afastasse essas
ameaças, muito pelo contrário. A gente percebe um silêncio da ANS
que agora está lidando com um acórdão do TCU indicando a
possibilidade de extorsões e abusos. Planos individuais estão
rareando, e a ANS está permitindo que pessoas físicas contratem
planos como se fossem coletivos. A pauta regulatória tem ido na
direção oposta da proteção ao consumidor.” Ana Carolina se refere
ao relatório divulgado recentemente pelo Tribunal de Contas da
União (TCU) que mostra que a ANS não tem mecanismos eficientes para
evitar aumentos abusivos nas mensalidades dos planos de saúde.
Desde sua criação até 2017, as mensalidades dos planos foram
reajustadas em 40% acima da inflação medida pelo IPCA (Índice de
Preços Ao Consumidor). No ano passado, os contratos individuais
foram reajustados em 13%, enquanto a inflação foi de cerca de 3%. A
ANS estabelece um teto de reajuste de 13,55% apenas para planos
individuais, que hoje são raridade no mercado e correspondem a 20%
dos planos. Os outros 80% estão em planos empresariais, coletivos
ou por adesão, que podem ser reajustados de forma livre. Após a
divulgação do relatório do TCU, o Idec entrou com uma ação civil
pública (ACP) no dia 7 de maio para pedir a suspensão do aumento
anual das mensalidades dos planos e a revisão da fórmula de
cálculo. No site do Idec se diz: “Caso a revisão dos valores
aconteça em 2018, mais de 9 milhões de usuários de planos
individuais e familiares serão afetados, ou seja, cerca de 20% dos
consumidores do serviço assistencial terão que pagar valores
abusivos calculados de forma inapropriada”. E a ACP pede que “A
agência só aplique a metodologia este ano quando corrigir o que
está em duplicidade; o Judiciário reconheça a ilegalidade dos
reajustes autorizados pela agência reguladora de 2009 em diante; a
ANS divulgue em seu site e em jornais de grande circulação o
reajuste como deveria efetivamente ter sido aplicado, para que os
consumidores saibam o que pagaram a mais; a agência compense os
reajustes a mais com descontos nos percentuais de aumento dos
próximos três anos; o órgão regulador pague uma indenização por
danos coletivos ao Fundo de Direitos Difusos”. Em resposta ao
relatório do TCU, a ANS enviou nota por e-mail dizendo: “O acórdão
do TCU citado não apontou nenhuma ilegalidade relacionada ao
reajuste máximo dos planos individuais ou familiares definido em
anos anteriores. As recomendações emanadas pelo órgão buscam
aprimoramentos metodológicos e de procedimentos, estando em linha
com o desejo da própria ANS de melhorar seu processo regulatório,
conforme ampla discussão social iniciada no Comitê de Regulação da
Estrutura dos Produtos. Por esses motivos, a ANS vem trabalhando
para aprimorar a metodologia de cálculo do reajuste dos planos
individuais ou familiares”. (Leia aqui a nota na íntegra)
Há poucos dias, o TCU rejeitou recurso da ANS contra decisões da
Corte relacionadas à fiscalização dos mecanismos de reajuste dos
planos de saúde. A agência opôs embargos de declaração pedindo a
anulação das determinações sob alegação de obscuridade e
contradição nas decisões dirigidas à autarquia. Como o pleito não
foi aprovado, ela deverá atender às determinações do Tribunal em
180 dias.
Marcello Fragano Baird, cientista
político da Universidade de São Paulo, pesquisador e autor da tese
“Redes de influência, burocracia, política e negócios na
Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)”, explica que a
partir de 2010 a ANS começa a ter em sua composição pessoas mais
ligadas ao mercado, empresários e liberais: “Essa tendência vai se
reforçando e tem muito a ver com a crescente força do PMDB no
governo. O PMDB começa a ganhar força no governo Dilma e a
presidente começa a ceder as indicações, principalmente para o PMDB
no Senado, liderado pelo Renan Calheiros, que começam a dominar as
indicações para a agência”. Apesar disso, Baird diz que, olhando
para os dados e decisões tomadas dentro da ANS, não conseguiu
identificar uma mudança muito grande de comportamento. Ele defende
que a força maior do mercado de planos de saúde tem mais a ver com
uma legislação malfeita e com os lobbies no Congresso: “Eu acho que
tem a ver com duas coisas: por um lado, a legislação de 1998, que
não previu que o mercado, para evitar a regulação mais forte sobre
os planos particulares, começaria a incentivar os planos coletivos,
que não têm o mesmo grau de proteção ao consumidor – e aí, hoje,
você praticamente não consegue fazer um plano individual, e, se
você não faz parte de nenhuma empresa, abriu uma nova frente de
crescimento que são as administradoras de benefícios como a
Qualicorp, que deixam o consumidor mais desprotegido porque podem
ser cancelados e reajustados de forma mais livre. E também com os
lobbies dentro do Congresso. O mercado tem sido beneficiado por
muitas medidas no Congresso. Só no governo Dilma teve mudança na
base de cálculo de PIS e Cofins que gerou em torno de R$ 4 bilhões
para as empresas e se possibilitou o investimento do setor
estrangeiro no setor de saúde no Brasil, com participação direta,
controle de empresas de capital estrangeiro na saúde. Isso a
despeito do veto parcial da AGU [Advocacia-Geral da União] por
considerá-lo inconstitucional”. Ainda assim, o pesquisador se diz
crítico à ANS: “Não fiscaliza como deveria, não consegue arrecadar
os recursos que deveria. Se você for olhar os números de multas não
pagas, os reais dados de dívida ativa de empresas junto à ANS, é
impressionante. Está longe de ser uma agência regulatória que
proteja o consumidor”.
Sobre os financiamentos de campanha, o levantamento
“Representação política e interesses particulares na saúde – A
participação de empresas de planos de saúde no financiamento de
campanhas eleitorais em 2014”, de Mário Scheffer e Lígia Bahia,
traz dados impressionantes: em 2002, o mercado de planos de saúde
deu R$ 1,7 milhão aos candidatos e, já em 2014, esses valores
chegaram a quase R$ 55 milhões. O estudo revela que o apoio
financeiro dos planos de saúde contribuiu para eleger a presidente
da República, três governadores, três senadores, 29 deputados
federais e 24 deputados estaduais e mostra que outros 71 candidatos
a cargos eletivos receberam doações, mas não se elegeram. “As
maiores doadoras em 2014 foram a Amil (R$ 26.327.511,22), seguida
da Bradesco Saúde (R$ 14.065.000,00), da Qualicorp (R$
6.000.000,00) e do grupo Unimed (R$ 5.480.500,00)”. Mostra ainda
que o grande destaque nas doações a candidatos nas eleições de 2014
foi a Amil, do ramo da medicina de grupo, doadora de R$
26.327.511,22, o que representa 48% do total das doações dos planos
saúde. Nas campanhas a governador em 2014, o maior beneficiado
teria sido Geraldo Alckmin, com doação de R$ 1.633.400,69 da Amil.
O maior doador individual da campanha do ex-ministro da Saúde de
Temer Ricardo Barros a deputado federal pelo Paraná em 2014 também
veio do mercado de planos de saúde, através da doação de Elon Gomes
de Almeida, que é sócio do Grupo Aliança, uma administradora de
planos de saúde. “No governo Temer, o que a gente tem é um
assanhamento, uma maior intimidade desses interesses primeiro com o
Executivo. O ministro Ricardo Barros parecia mais um consultor de
negócios dos planos de saúde do que ministro. Montou um grupo de
trabalho para propor planos acessíveis, que era uma reivindicação
do mercado, criar produtos mais baratos, piores e com menor
cobertura – e que o novo ministro, Gilberto Occhi, já disse
concordar. O que aconteceu nesse caso foi que, com a crise, esse
mercado perdeu muitos clientes, principalmente de funcionários que
perderam o plano junto com o emprego, e houve essa reivindicação
por parte das operadoras de planos de saúde. E o Ministério de
Saúde encampou isso. O grupo de trabalho foi totalmente composto
por seguradoras. E essa proposta foi para a ANS, que meio que
validou, fez um relatório bastante favorável”, diz Scheffer.
Mas a situação dos usuários de planos
de saúde ainda pode piorar, explica Ana Carolina Navarrete. “No ano
passado, nós ficamos atentos a um projeto de lei que é um
verdadeiro pacote de vulnerabilidade, desde criar entraves para o
consumidor levar os processos para a Justiça até reduzir cobertura,
limitar atendimentos de urgência e emergência para planos
hospitalares ou de referência… Ele está parado atualmente, creio
que por ser ano de eleições, mas é preciso ficarmos atentos”,
alerta. Scheffer acrescenta: “É uma lei com inúmeros retrocessos e
que piora muito tudo isso, todas as brechas que já existem. Foi uma
comissão montada em 2017 em caráter de urgência com poucas
audiências públicas, a maioria com a participação das operadoras, e
isso culminou, no fim do ano, com um relatório. O relator é o mesmo
da reforma trabalhista, que é o Rogério Marinho. Como houve uma
grande mobilização, ela parou, mas ainda há um fantasma rondando. É
uma lei que do começo ao fim pende aos interesses das empresas. A
previsão da aprovação em plenário não deve acontecer em ano
eleitoral, mas, se colocarem em votação, a chance é alta. Se existe
uma sensação de que convênio pode tudo, se essa lei for aprovada,
pode piorar muito.”