Imagine uma noite de boxe. Na
primeira luta, você fará uma aposta em um monumental gigante de 110
kg, que enfrentará um lutador franzino, 55 kg, magro. No segundo
páreo, é a vez de apostar fichas no sujeito magrinho que vai
enfrentar um musculoso e forte. O que parece incoerência serve bem
de metáfora para o atual cenário de financiamento da saúde
brasileira. De um lado, o sistema de saúde suplementar que investe
a maior parte dos recursos para atender quase de 50 milhões de
pessoas, enquanto ao SUS – com recursos limitados e infraestrutura
complexa – cabe toda a população brasileira.
“Acho que a Agência [Nacional de
Saúde, a ANS] atingiu o limite de competência. Nosso problema não
está mais na regulação do sistema privado ou SUS, mas sim em termos
um sistema desintegrado, em que os atores competem entre si”, disse
o primeiro diretor-presidente da agência e hoje diretor da Monitor
Saúde, Januário Montone, durante o Congresso Internacional 2014 da
Aliança para a Saúde Populacional (ASAP), nesta quinta-feira
(10).
O objetivo do painel era reunir
todos os ex-diretores da agência para discutir seus 14 anos de
criação. Respondeu à convocação da ASAP, além de Montone, Maurício
Ceschin, que ocupou o cargo até 2012. Fausto Pereira dos Santos,
hoje diretor no Ministério da Saúde, cancelou participação. De toda
forma, o debate teve mais tom de discussão de rumos para a Saúde
brasileira do que de retrospectiva. E, ao menos para Montone, o
caminho parece bem claro e passa pela integração de um sistema
nacional, hoje dividido entre as esferas pública e
privada.
“Sistema Único de Saúde ou Sistema
Nacional de Saúde? O modelo separado causa impactos inaceitáveis na
sociedade brasileira”, ponderou, referindo-se especificamente à
musculatura algumas vezes excessiva do setor privado. “Temos
excesso de equipamentos em muitos lugares, falta em outros… De onde
eu vim isso se chamava jogar dinheiro fora.”
É preciso superar falsos dilemas,
disse Montone, que também foi secretário de Saúde do município de
São Paulo – desafio muito maior que liderar a agência reguladora,
admitiu. Para ele, é fácil criticar o SUS que precisa,
evidentemente, de mais recursos, mas o que exige um novo modelo de
gestão e governança.
“É o momento da terceira onda da
reforma sanitária brasileira”, disse, colocando em primeiro lugar a
criação do SUS, com a Constituição de 1988, e depois o
estabelecimento da ANS, que regulamentou o setor privado. Esses
dois marcos, considerados quebras de paradigma por Montone,
precisam ser sucedidos por uma integração dos dois sistemas com uma
agenda bem definida.
“[É preciso] perceber que o SUS é
público, não é estatal. Expandir o setor de saúde suplementar com
incentivos do poder regulador, a descoberta e o desenvolvimento de
áreas onde se tenha uma ação integrada”, explicou, sem ponderar a
respeito das dificuldades legais ou técnicas da questão. Para ele,
a integração é o caminho para mesclar a força dos setores público e
privado – abrangência no primeiro, musculatura no
segundo.
Assim, o papel da ANS dentro deste
novo modelo de saúde seria a de indutora do desenvolvimento do
setor da saúde suplementar em integração com SUS, o que “não
avançou” nos últimos anos. “O trabalho da agência em 15 anos foi o
melhor possível dentro das circunstâncias, pois ela perdeu muito
poder de fogo ao longo dos anos”, disse, mas ressaltou o papel de
fiscalização, “que também é importante, mas que precisa ser
contrabalanceado”.
Saúde vs
doença
Maurício Ceschin, último
diretor-presidente da ANS, preferiu se ater ao tema do congresso e
pensar no potencial do órgão de promotor do bem- estar. “A agência
tem cada vez mais um papel na produção de saúde”, disse,
ressaltando a regulação assistencial e o incentivo à qualidade, que
“temos o papel de cada vez mais incentivar”.
O principal desafio do sistema,
“de longe”, é a sustentabilidade, tanto na saúde suplementar como
na pública. E não se trata de um desafio brasileiro. “Garantir
acesso à saúde não é um desafio brasileiro, é um desafio global”,
lembrou Ceschin. “Estamos inseridos em um contexto de modelo
muito sui generis, que não conversa de forma nenhuma.
A lei orgânica do SUS e da saúde suplementar tem
intersecção.”
O desafio da sustentabilidade
recai ainda sobre a “cultura de tratamento da doença, não de
promoção da saúde. Sem querer ofender ninguém, mas estamos em um
modelo de consumo que privilegia a utilização de materiais”. Diante
do cenário negativo, potencializado pelo envelhecimento da
população, é preciso não só um “choque de eficiência” do setor, mas
também um estímulo para que as operadoras adotem programas de
promoção à saúde – registrados pela Agência.
Para o ex-diretor, a ANS pode ser
mais ativa ao contribuir com a promoção à saúde. Entre as
possibilidades está a regulação de incentivos das operadoras para
os próprios beneficiários – o que exigiria uma evidente mudança de
cultura, mas que “é possível”.