"Não quer dizer que temos de ir para o
extremo oposto e que todos devam questionar sua identidade de
gênero. É algo que surge naturalmente."3
'Uma ferida na alma que não cicatriza'
A advogada Gisele Alessandra diz
ter sentido que havia algo diferente em torno dos 5 anos de idade.
Ela conta nunca ter se identificado com nada do universo
masculino.
"Eu me recusava a usar o
uniforme dos meninos. Gritava e dizia que não queria ir pra escola.
Sentia um grande desconforto e não entendia o que era, mas percebia
que, se fizesse modificações para deixar a roupa mais feminina, me
sentia melhor", diz a advogada.
"Minha vida escolar foi muito
difícil. Sofri muito bullying. Fui chamada de todas as palavras
pejorativas: traveco, florzinha, aberração."
Quando Gisele tinha 15 anos, uma
prima perguntou por que pessoas a estavam ridicularizando.
"Respondi que era mulher. Minha prima me falou que eu não era, que
estava doente e me levou para um psiquiatra que fazia cura gay.
Minha família é religiosa, e fui levada para uma sessão de
exorcismo", conta Gisele.
"Tudo isso criou um trauma
inenarrável, uma ferida na alma que não cicatriza. Fiquei com tanto
medo que apaguei a Gisele da minha vida por muitos anos."
A advogada passou então a
"representar o papel" de Marcus, seu nome de nascimento, e só
deixou de fazer isso há cerca de oito anos, quando percebeu que
"usar essa máscara" estava gerando problemas como ansiedade,
depressão e psoríase. Foi quando começou uma transição gradual para
sua nova identidade.
Há cinco anos, não existe mais
qualquer sinal de Marcus. Ele deu lugar de vez à advogada
transgênero que hoje trabalha no Grupo Dignidade, uma ONG dedicada
à defesa de direitos LGBT, e na área criminal.
Ela diz ter recebido a mudança
da OMS com uma "grande felicidade". "É importante esse
reconhecimento de que não se trata de uma doença mental, para que
não tentem nos tratar. Acompanhei o caso de uma menina trans em que
a família a internou compulsoriamente em uma clínica. Isso é um
perigo."
Por que ser transgênero não é doença
A nova definição da OMS enterra
na prática uma noção que se tinha a respeito de pessoas
transgênero.
Ser transgênero constava até
então no capítulo do sobre problemas mentais do código da
organização, como "distúrbio de identidade de gênero".
Agora, muda de nome, para
"incongruência de gênero", e passa a integrar um novo capítulo
sobre condições relacionadas à saúde sexual.
A edição
anterior do guia falava de "transexualismo" — o sufixo "ismo" vem
do grego e atribui à condição um caráter de patologia.
Tratava-se de "um desejo de
viver e ser aceito como um membro do sexo oposto", normalmente
acompanhado por "desconforto" com o órgão genital e vontade de se
submeter a cirurgia ou tratamento hormonal para adequar o corpo à
percepção pessoal.
Ao deixar de ser doença, a forma
de se referir a isso também mudou, como ocorreu com
"homossexualismo", que deu lugar a "homossexualidade", quando a OMS
tirou de seu guia de doenças a atração por pessoas do mesmo
sexo.
O correto é usar transexualidade
ou transgeneridade. "O sufixo 'dade' se refere a uma
característica. A mudança despatologiza a condição", diz Abdo.
O novo CID abre mão por completo
desses termos e trata a transgeneridade como uma "persistente
incompatibilidade na percepção de um indivíduo de seu próprio
gênero e o sexo designado" ao nascer.
A OMS explica que isso deve se
manifestar por vários meses ao menos. O diagnóstico não pode ser
feito antes da puberdade, e preferências e comportamentos que
destoam do esperado para o sexo biológico não servem de base para
isso.
"Uma doença é algo que afeta
negativamente o corpo, e a incongruência de gênero não é isso", diz
Lale Say, coordenadora do departamento de pesquisa e saúde
reprodutiva da OMS.
Ela explica que essa condição,
mesmo que não seja uma patologia, ainda consta no guia de doenças
porque é algo que demanda serviços de saúde, como cirurgias,
tratamento hormonal e apoio psicológico. "Mas não precisa prevenir
ou curar. Não é algo que se deve lutar contra, mas que merece
suporte."
Mudança 'reflete a visão científica atual'
A versão anterior do CID, de
1990, começou a ser revista há dez anos. Grupos analisaram a
literatura científica e consultaram profissionais e pessoas
interessadas em cada especialidade.
"O resultado reflete a visão
científica atual. Ser transgênero não é uma questão médica, é uma
questão pessoal", diz Say.
A OMS levou um tempo para
formalizar a mudança de entendimento, diz Saadeh. "A
transexualidade não é considerada uma doença mental há 15 ou 20
anos. Demanda um diagnóstico para justificar os tratamentos
necessários, senão vira só intervenção estética. E não é o caso,
porque a pessoa sofre com a condição", afirma.
"Mas diagnóstico não é sinônimo
de doença. Por exemplo, gravidez de risco é um diagnóstico, mas não
é doença."
O psiquiatra diz que ainda
recebe muitos transgêneros em seu consultório que se consideram uma
"aberração". "Chegam de todo o Brasil se achando doentes, um erro
de Deus, e mostramos que não é errado ou uma escolha", diz.
Say diz que a mudança no código
da OMS ajuda a "aprimorar o conhecimento e a compreensão de
profissionais de saúde e a evitar comportamentos com um viés",
influenciados por crenças pessoais.
Abdo, da ABP, avalia que isso
muda o alvo dos cuidados de saúde, que se voltam para o sofrimento
gerado pela condição, e não para a incompatibilidade de gênero em
si. "Da mesma forma que não se pode tratar um homossexual para
mudar sua orientação sexual, não há por que tratar um transgênero
para acabar com a incongruência entre sexo biológico e
psicológico", afirma Abdo.
"O acompanhamento será feito
para adaptar o sexo biológico ao desejado ou percebido como
próprio, um processo que é longo e demanda acompanhamento por uma
equipe capacitada."
'É um primeiro passo', diz ativista
Cianán Russell, da Transgender
Europe, uma das principais ONGs do mundo de defesa dos direitos de
transgêneros, diz que a mudança é um "bom primeiro passo". "Não é
apenas simbólica, mas prática. É fantástica e deve ser celebrada. É
o resultado de anos de ativismo e um sinal de que a OMS está
respondendo às nossas críticas", afirma.
Mas Russell faz ressalvas, por
considerar a terminologia ainda "pouco clara", e diz que há um
"longo caminho" a percorrer. "A forma usada hoje ainda patologiza
de certa forma a condição, porque, por mais que não precise de
diagnóstico psiquiátrico, ainda exige algum diagnóstico."
Russell acha improvável que a
transgeneridade saia por completo do CID, porque é um mecanismo que
dá acesso à cobertura de serviços por planos de saúde. Mas gostaria
de ver a condição em uma categoria que não demande diagnósticos
atrelados à identidade de gênero.
"Todos os procedimentos médicos
que uma pessoa trans precisa, pessoas que não são trans também
precisam. Não há nada que seja exclusivo. Mas essa mudança é passo
que a OMS não parece estar pronta para dar."
Russell ressalta que a OMS deve
se esforçar para implementar as novas diretrizes mais rápido do que
no guia anterior. "Mesmo ratificada nos anos 1990, a outra edição
foi implementada nos Estados Unidos só em 2015, por exemplo.
Enquanto não forem aplicadas na prática, transgêneros continuarão a
serem considerados doentes", afirma.
A OMS afirma ainda que não
classificar a transgeneridade como uma doença mental pode reduzir o
preconceito.
Espera-se que, com o tempo, isso
ajude na aceitação social e promova um melhor acesso a serviços de
saúde. "A pessoa vai se sentir mais confortável para pedir ajuda",
diz Say.
Abdo acredita que isso pode
contribuir, mas não será de imediato. Ela cita o exemplo da
homossexualidade, que saiu do guia da OMS na edição anterior e,
ainda hoje, há um estigma atrelado a essa orientação sexual.
"Os homossexuais se apresentam
hoje de forma mais confortável na sociedade, são mais respeitados,
considerados indivíduos que existem e que não devem ser submetidos
a tratamentos para mudar quem são", afirma a psiquiatra.
"Mas ainda existe quem tente
fazer isso, fique deprimido ou tente se matar. As novas gerações
serão as responsáveis pela desestigmatização da
transgeneridade."
Saadeh faz a mesma avaliação.
"Ainda hoje há quem considere homossexualidade uma doença e que tem
cura. Para muitas pessoas, ter uma identidade de gênero diferente
do sexo biológico é algo maluco", afirma ele. "Conforme as pessoas
se tornem menos ignorantes em relação a isso, as atitudes podem
mudar, mas levará tempo."
Gisele Alessandra diz que
declarar-se transgênero foi uma realização pessoal, mas que isso
lhe custou o contato com a família.
"Passei dois anos cuidando da
minha mãe, que tinha câncer. Depois que ela morreu, viraram as
costas para mim. Recebi uma carta em que diziam 'essa coisa em que
me transformei' não significava nada para eles. Entraram com uma
ação na Justiça para me obrigar a sair do apartamento dela", diz a
advogada.
"Em meio ao trauma de tudo que
havia acontecido e à dor do luto, eu ainda por cima não tinha mais
onde morar."
Ao mesmo tempo, ela diz que
hoje, após ter assumido uma aparência feminina, ela sente-se mais
aceita socialmente, mesmo que não totalmente. "Ninguém mais me
xinga no meio da rua nem sou alvo de qualquer outro ato de
violência. Pelo contrário, me elogiam."