A Polícia Civil do Distrito Federal informou nesta segunda-feira (5) que já contabiliza 30 denúncias de pacientes que teriam sido lesados pela organização criminosa que lucrava com a prescrição de cirurgias sem necessidade. Treze supostos membros da "máfia" de órteses e próteses foram presos na última quinta (1º), em uma operação conjunta da polícia com o Ministério Público.
A TV Globo teve acesso às gravações dos diálogos entre médicos e empresários suspeitos, além de depoimentos das vítimas. Uma paciente afirmou à Polícia Civil que, durante o tratamento, os médicos chegaram a fazer cirurgias sem pedir o consentimento dela.
"Várias dessas cirurgias, eu nem fiquei sabendo. Era simplesmente assim, eu estava com quadro infeccioso na UTI ou internada. 'Olha, hoje você vai fazer tal procedimento'. E eu ia para o centro cirúrgico, fazia o procedimento cirúrgico e voltava", diz.
Nesta segunda, mais vítimas foram chamadas a prestar depoimento na Delegacia Especial de Repressão ao Crime Organizado, que comanda as investigações. Na estimativa da Polícia Civil, o grupo pode ter causado prejuízos a 60 pacientes apenas neste ano.
Entre a noite de sexta (2) e a madrugada de sábado (3), 5 dos 13 médicos e empresários presos foram soltos pela Justiça, após conseguirem habeas corpus. Os médicos Henry Campos, Leandro Flores, Rogério Gomes Damasceno e Wenner Costa Catanhêde e a empresária Mariza Martins devem responder ao processo em liberdade.
Articulação
Escutas telefônicas obtidas pela Polícia Civil do Distrito Federal e reveladas pelo Fantástico mostram a conversa entre um médico e um fornecedor de órteses e próteses sobre como continuar "enrolando" um paciente e faturar mais. De acordo com a polícia, o esquema movimentou mais de R$ 30 milhões nos últimos cinco anos.
A conversa é entre o médico Juliano Almeida e Silva e o empresário Micael Bezerra Alves, um dos sócios da TM Medical, empresa que fornecia as próteses. A companhia é suspeita de oferecer materiais superfaturados, vencidos ou de baixa qualidade (confira a resposta dos citados no fim desta reportagem).
Médico: Eu estou tentando melhorar aqui, entendeu? O que mais a gente pode colocar aqui?
Fornecedor: É...
Médico: O que mais a gente pode colocar aqui? Botei bipolar, botei brill, dois drill, botei mostático, botei motorização, equipo de ligação. O que mais?
Fornecedor: Essa cânula. O que que é? Debridação?
Médico: É a canulazinha que vem no kit da assectomia. Aí é só para enrolar mesmo.
De acordo com as investigações, os médicos envolvidos no esquema encaminhavam os pacientes para fazer as cirurgias principalmente no hospital Home, na Asa Sul. Um dos funcionários, Antônio Márcio Catingueiro Cruz, fazia contato com um representante da fornecedora, Micael Alves. Segundo a polícia, o dinheiro pago pelos planos de saúde era dividido entre o grupo.
Após uma série de denúncias divulgadas pelo Fantástico desde janeiro de 2015, os suspeitos foram obrigados a mudar de estratégia, diz a polícia. "A partir de então, passaram a utilizar o pagamento em espécie para tentar de alguma forma evitar o rastreamento", contou o delegado que investiga o caso, Adriano Valente.
Mais vítimas
Entre as vítimas que já prestaram depoimento à Polícia Civil está uma paciente que diz "quase ter morrido" por causa de um fio-guia (por onde passam cateteres) deixado no pescoço dela. A polícia investiga se ela foi alvo de tentativa de homicídio. Ao G1, ela tinha relatado que se sentia "usada" pelos médicos. "Não me viram como uma paciente. Não me tratavam como uma vida e sim como algo que estava gerando lucro."
Outra vítima, que perdeu os movimentos do corpo, afirma que o grupo "tem brincado com a vida das pessoas". "Isso é muito triste porque a gente não pode contar com uma pessoa que diz que se formou para poder ajudar, para poder estar ali, melhorando a vida de uma pessoa com dores ou com outros tipos de problema", lamentou. "Para mim, são monstros."
Repercussão
Presidente do Sindicato dos Médicos do DF, Gutemberg Fialho disse que, se as denúncias forem comprovadas, os médicos devem ser punidos severamente. "Essa prática de indicar procedimentos desnecessários e superfaturados expõe pacientes a risco e aumenta os custos de operação. Isso é ruim quando acontece no sistema público e também é quando ocorre no sistema privado, na medicina suplementar, pois o usuário acaba pagando um preço elevado."
O Conselho Regional de Medicina informou que vai abrir sindicância para apurar a denúncia do ponto de vista ético e profissional. Se confirmados os indícios, um processo contra os médicos envolvidos pode ser instaurado.
VERSÃO DOS ENVOLVIDOS
Rogério Damasceno: o advogado do médico, Pedro Ivo Veloso, diz que as suspeitas são "completamente infundadas".
Juliano Almeida e Silva: em nota, o médico afirma que os trechos divulgados na escuta estão descontextualizados e que não participa de qualquer procedimento duvidoso.
Johnny Wesley Martins: a defesa do médico declara que ele não operou nenhum dos pacientes vinculados à denúncia e que não é sócio da TM Medical.
Hospital Home: a defesa do hospital afirma que o estabelecimento age dentro da legalidade, que não tem qualquer pagamento de forma ilícita, seja partindo do hospital ou para o hospital.
TM Medical: a fornecedora informa que não foram utilizados materiais da empresa em nenhuma das cirurgias denunciadas.
O advogado do sócio da TM Medical Micael Bezerra Alves não foi localizado.