Planos de saúde são serviços almejados no
Brasil. Segundo uma pesquisa de 2015 feita pelo Ibope a pedido do
Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), 74% dos
brasileiros que não possuem plano de saúde gostariam de ter. Não é
difícil entender essa aspiração: apesar de os planos só atenderem
um quarto da população, a disponibilidade de médicos no setor
privado é três
vezes maior do que no SUS, que também sofre com a falta de
especialistas e longas esperas para atendimento, marcação de
consultas e de exames.
Nos últimos dois anos, porém, o
número de privilegiados com acesso aos planos de saúde no Brasil
caiu em 2,8 milhões: de 50,4 milhões em dezembro de 2014 para 47,6
milhões em janeiro de 2017, segundo os dados mais recentes
divulgados pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
“A contratação de plano de saúde
está diretamente relacionada à empregabilidade formal e ao poder de
compra do cidadão. Em um cenário econômico adverso, é natural que
haja redução no número de beneficiários”, afirmou a agência, em
nota.
"Em um
cenário econômico adverso, é natural que haja redução no número de
beneficiários"
ANS
Do total de usuários, cerca de
66% têm planos coletivos empresariais e 13% têm planos coletivos
por adesão (ligados a associações profissionais ou sindicatos),
enquanto menos de 20% têm planos individuais ou familiares. Por
isso o aumento do desemprego tem impacto direto no setor. Além
disso, alguns usuários alegam alta dos preços e insatisfação com a
qualidade dos planos como motivo de cancelamento do serviço.
Como esses 2,8 milhões de
brasileiros que perderam o plano de saúde estão cuidando da própria
saúde?
Uma parcela, composta por jovens
saudáveis, simplesmente não deve precisar recorrer a serviços de
saúde tão cedo. Há os que buscam readquirir o serviço
imediatamente, mas encontram obstáculos na busca de planos
individuais. Alguns decidem usar apenas serviços particulares e
outros recorrem aos serviços públicos de saúde.
Neste contexto, surgiram novos
modelos de negócio em saúde, como clínicas que cobram preços
populares por atendimentos, além de serviços que conectam pacientes
e médicos (apelidados de “Uber da saúde”). Paralelamente, o
Ministério da Saúde anunciou seu projeto
de “planos de saúde populares” – serviços que estariam
disponíveis a preços mais baixos, mas com uma cobertura menor do
que é exigida hoje pela ANS.
O G1 conversou com pessoas que estão
nessa situação para entender como suas vidas mudaram diante e como
isso levou a mudanças nos serviços de saúde.
Plano individual é categoria em extinção
Para quem se vê de repente sem
plano de saúde por perda de emprego ou aumento repentino do preço,
mas faz questão de manter a segurança do plano, está cada vez mais
difícil contratar um plano individual, desvinculado de empresas,
associações profissionais ou sindicatos.
É o caso da professora de inglês
Gabriela Miranda, de 30 anos, que precisou cancelar seu plano
devido a um reajuste no preço que fez a mensalidade pesar no bolso.
Logo em seguida, passou a procurar uma alternativa com preço mais
acessível, mas levou alguns meses até encontrar uma solução viável.
“A gente fica de mãos atadas: ou acaba cedendo a uma rede de
atendimento inferior ou o preço aumenta demais.”
O medo de Gabriela era que sua
filha ficasse doente no período em que não estivesse coberta pelo
plano. Hoje, ela contratou um novo plano em caráter temporário. Mas
a ideia é que, no futuro, sua família consiga obter um plano de
mais qualidade e preço mais acessível. Isso só será possível,
segundo Gabriela, se a família aderir a um plano empresarial – não
individual – vinculado ao cadastro de Microempreendedor Individual
(MEI) de sua mãe.
“A gente
fica de mãos atadas: ou acaba cedendo a uma rede de atendimento
inferior ou o preço aumenta demais.”
Gabriela Miranda, professora de inglês
A relações públicas Flavia
Medici, de 28 anos, também decidiu cancelar seu plano depois de um
aumento repentino da mensalidade. “Fui refletir sobre o assunto e o
que contribuiu para a decisão foi que eu já não considerava a
cobertura do plano boa.” Nesse período, ela pesquisou a fundo sobre
outras opções de planos, fez planilhas de custo e teve de lidar com
a dificuldade adicional: “Não dá mais para se filiar a um plano
como pessoa física, tem que se vincular a uma associação”, conta.
Como ela e o namorado já planejavam estabelecer uma união estável,
resolveram formalizar a decisão e Flavia acabou tendo acesso ao
plano de saúde dele.
Segundo o diretor-executivo da
Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), Antonio Carlos
Abbatepaolo, as operadoras de saúde têm pouco interesse na criação
de planos individuais, pois estes são submetidos a regras mais
rígidas pela ANS, que determina o valor do reajuste dos planos. “O
reajuste é menor do que seria necessário para equilibrar a
carteira. O último reajuste foi de 13,57%. É um reajuste acima da
inflação, mas a inflação médica bateu 19%”, diz Abbatepaolo.
“As empresas estavam perdendo
dinheiro, tendo prejuízo. A reação natural da operadora é cancelar
o serviço. Se fosse em qualquer empresa – uma linha de produto
achocolatado, por exemplo – se está dando prejuízo, não faz mais.”
Hoje, menos de 20% dos usuários de plano de saúde têm planos
individuais.
“As
empresas estavam perdendo dinheiro, tendo prejuízo. A reação
natural da operadora é cancelar o serviço. Se fosse em qualquer
empresa – uma linha de produto achocolatado, por exemplo – se está
dando prejuízo, não faz mais.”
Antonio Carlos Abbatepaolo, diretor da
Abramge
Por causa dessas dificuldades,
muitas pessoas têm optado por criar microempresas de fachada para
ter um CNPJ que permita a adesão a um plano coletivo empresarial ou
têm se filiado a associações profissionais que não representam sua
profissão real para conseguir um plano coletivo por adesão.
Para o professor do Departamento
de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP)
Mário Scheffer, isso coloca o consumidor em uma posição
extremamente frágil diante dos planos. “Isso é uma arapuca, uma
armadilha porque os planos coletivos e empresariais não são
alcançados pela lei mais rigorosa aplicada aos planos individuais,
que limita reajuste de preço e estabelece regras sobre rescisão de
contrato.”
No caso de uma família de cinco
pessoas que tem um plano empresarial ligado a uma microempresa, por
exemplo, se um dos membros for acometido por um problema grave de
saúde, a operadora poderá rescindir o contrato no ano seguinte ou
aumentar a mensalidade em 500%, por exemplo. “Começa com um valor
atraente, mas podem reajustar ou rescindir a qualquer momento”, diz
Scheffer.
Segundo a ANS, uma operadora de
saúde não é obrigada a oferecer plano individual. “Essa é uma
decisão estratégica de cada empresa. Entretanto, caso a operadora
tenha planos individuais com comercialização ativa registrados na
ANS, ela não poderá negar a venda aos consumidores”, explica.
Abbatepaolo reconhece que a
prática de abertura de empresas de fachada somente para adesão a
plano empresarial existe, mas afirma que as operadoras de saúde não
têm responsabilidade sobre isso. “Esse mercado não pode ser
penalizado por causa desse tipo de fraude. Se há fraude, tem que
ser combatido pelos órgãos competentes. Secretarias da Fazenda e
juntas comerciais têm que averiguar.”
Poupando o dinheiro do plano
Em meio à insatisfação com os
serviços oferecidos pelo plano de saúde, alguns optam por guardar o
dinheiro da mensalidade do plano e usá-lo para pagar atendimentos
em clínicas particulares. É o caso da empresária Rute Pogan
Marquardt, de 33 anos.
Rute pagava plano de saúde para
a família havia vários anos. Quando ficou grávida, fez todo o
acompanhamento pré-natal pelo plano. Ela queria um ter parto
humanizado e acabou optando por um hospital público de Joinville,
cidade onde mora, por ser uma instituição reconhecida por realizar
um bom trabalho na área. “Fui bem atendida e atendeu às
expectativas. Pedi para fazer o parto sem analgesia e eles
atenderam certinho o pedido”, conta.
"(No
hospital público) fui bem atendida e atendeu às expectativas. Pedi
para fazer o parto sem analgesia e eles atenderam certinho o
pedido"
Rute Marquardt, empresária
O atendimento pediátrico à sua
filha também foi feito pelo SUS durante o primeiro ano de idade. “O
atendimento foi muito bom. Tinha plano, mas fazia por lá porque
gostava mais.”
A empresária já sentia que o
investimento no plano de saúde não compensava. Mas a gota d’água
foi quando precisou com urgência de um dermatologista para tratar
uma coceira e o plano só tinha consultas disponíveis para três
meses depois. Foi assim que Rute decidiu cancelar o plano e
investir o valor no tesouro direto. Assim, ela guarda R$ 800 por
mês. Sempre que precisa de atendimento médico, ou recorre ao SUS ou
paga uma consulta particular e desconta o valor que usou da quantia
que será aplicada no mês seguinte.
Assim como Rute, a esteticista
Regiane Medrado, de 36 anos, também considera o serviço do SUS
superior ao privado em certos setores, como no atendimento às
gestantes. “Mesmo quando tinha convênio do meu esposo, fiz todo o
acompanhamento da gestação pelo SUS. Na parte de cuidado e
prevenção para a mulher, o SUS tem uma qualidade muito boa, às
vezes superior ao convênio.”
Regiane teve de cancelar seu
plano de saúde por causa do preço acima do que poderia pagar. “Hoje
estou 100% dependente do SUS. No caso do meu filho, que é criança,
procuro fazer todo o acompanhamento no posto de saúde, manter as
vacinas em dia, os exames de rotina. Minha preocupação maior é se
ocorrer alguma emergência, aí existe uma deficiência muito
grande.”
Mário Scheffer, da USP, observa
que, atualmente, muitas pessoas que têm planos de saúde já procuram
o SUS para vários tipos de atendimento, como para tratar HIV,
câncer, fazer hemodiálise, transplante, cirurgias cardíacas de alta
complexidade, entre outros. Com uma rede ainda mais limitada de
atendimento pelo plano de saúde, como pode ocorrer no plano
popular, a situação deve se intensificar.
“Se houver uma política de
incentivo ao crescimento do mercado privado que entrega pouco, com
cobertura insuficiente, conjugado com a retração de financiamento
do SUS nos próximos 20 anos, certamente vamos ter a maior crise
sanitária do sistema de saúde desde que o SUS foi criado. É um
caminho preocupante”, alerta Scheffer.
Clínicas de preço popular e “Uber da saúde” se expandem
Clínicas que oferecem
atendimento médico a preços populares têm tido um crescimento
expressivo nos últimos anos e empresários do setor afirmam que
grande parte da clientela é composta por pessoas que deixaram de
ter plano de saúde.
Thomaz Srougi, CEO e fundador da
rede de centros médicos Dr. Consulta afirma que 80% dos clientes da
rede não têm planos de saúde. “A gente está recebendo pessoas que
perderam o plano porque nossos centros concentram muitos recursos
de saúde: não só consulta, mas também exames de laboratório, de
imagem e procedimento de baixa complexidade”, diz.
Srougi diz que uma das missões
da rede é “aliviar a insegurança emocional” de estar desprotegido,
sem o amparo de um plano de saúde. Inaugurada em 2011 com uma única
unidade em Heliópolis, a clínica hoje tem 28 unidades e fez cerca
de 90 mil atendimentos em dezembro. Ele afirma que a ideia é que o
paciente seja acompanhado de perto pelos profissionais da clínica
“como se fosse o acompanhamento que o médico da família dava aos
nossos pais antigamente”.
A rede de clinicas Dr. Agora
também tem recebido pessoas que ficaram órfãs do plano de saúde e
esse público específico tem crescido cerca de 30% a cada mês, de
acordo com Guilherme Berardo, CEO da rede.
As clínicas têm perfis
diferentes: enquanto o Dr. Consulta oferece consultas agendadas com
especialistas, além de exames e procedimentos simples, o Dr. Agora
oferece consultas sem agendamento apenas com clínicos gerais.
A jornalista Gabriela Fernandes,
de 30 anos, experimentou o atendimento do Dr. Consulta pela
primeira vez no ano passado. Sem plano de saúde há bastante tempo,
ela costuma recorrer ao SUS para tratamentos, mas estava cansada
das longas esperas para agendar consultas. Passou em frente a uma
clínica e resolveu fazer um agendamento já para o dia seguinte.
“Passei tudo para a médica e ela realmente teve a preocupação de
entender o que eu tinha. A consulta demorou 40 minutos e ela pediu
os exames necessários.”
Gabriela teve de pagar pelos
exames em um serviço particular, mas considera que a agilidade no
atendimento valeu a pena. “É algo que estou indicando para pessoas
que tem uma urgência e não têm como esperar pelo SUS. O preço é
bom, o atendimento é rápido e tive boas referências. ”
Outros serviços que têm surgido
recentemente são aqueles que conectam pacientes com médicos para
consultas a preços populares, que vêm sendo chamados de “Uber da
saúde”. É o caso do SOS Consulta. Trata-se de uma plataforma online
em que clínicas particulares previamente cadastradas disponibilizam
horários para consultas e exames a preços mais baixos. O paciente
faz o agendamento online e paga diretamente pelo site ou por boleto
bancário.
Segundo o empresário Rogerio
Aleixo, CEO do SOS Consulta, as clínicas passam por uma avaliação
prévia antes de serem cadastradas, o que deve garantir uma
qualidade de atendimento. Só em São Paulo, já existem mais de 100
clínicas cadastradas.
“O pessoal que perdeu o plano de
saúde está tendo que migrar para outras alternativas. É um sistema
seguro. Controlamos tudo. Se alguém perdeu o plano e quer uma
consulta, nós somos uma opção acessível”, afirm Aleixo.
O que esses serviços têm em
comum é que ambos se posicionam como uma alternativa ao plano de
saúde em atendimentos de baixa e média complexidade. Porém os
serviços não conseguiram resolver de forma satisfatória um
problema: como fazer a transição desses pacientes para outros
serviços quando eles necessitam de um tratamento de alta
complexidade.
Pacientes diagnosticados em um
desses serviços que pretendam continuar o tratamento no SUS têm de
“voltar ao início da fila”: ou seja, passar por atendimento em uma
unidade básica de saúde para ser encaminhado para um especialista,
agendar consulta e só então ter acesso a um serviço
especializado.
"Como
essas clínicas não encaminham para nenhum serviço, a pessoa vai ter
dificuldade e vai voltar a peregrinar pelo SUS ou procurar um plano
de saúde"
Prof. Mario Scheffer, FMUSP
“Atualmente não é possível
formalizar uma parceria com o sistema público. O que acaba
acontecendo é que, quando o paciente já chega no sistema público
com um diagnóstico, ele pode conseguir alcançar o tratamento de
forma mais rápida, ainda que isso não seja formalizado”, diz
Srougi. Berardo afirma que isso é realmente um problema e que a
ambição do Dr. Agora é poder referenciar pacientes para o SUS.
Outra limitação desses modelos
de clínicas é que elas não atendem urgências e emergências.
Para
Scheffer, esse é um modelo de negócio que cresce muito atualmente,
pois preenche uma lacuna importante do SUS que é o atendimento de
especialidades. “Mas preenche com muita limitação, pois o paciente
não vai ter condição de arcar com o seguimento daquele problema de
saúde” caso o problema seja de alta complexidade. “Como essas
clínicas não encaminham para nenhum serviço, a pessoa vai ter
dificuldade e vai voltar a peregrinar pelo SUS ou procurar um plano
de saúde.”