O usuário pode comprar gato por lebre com a proposta de criação
de planos de saúde a baixo custo que o governo federal planeja
lançar. A medida, segundo especialistas, não desafoga o SUS e não
beneficia o consumidor. Em contrapartida, favorece operadoras
privadas, que perderam 1,5 milhões de usuários somente de junho de
2015 a junho 2016, conforme dados que constam no relatório do grupo
de trabalho do projeto.
Com possibilidade de reajustes fora das normas atuais da Agência
Nacional de Saúde (ANS), aumento nas taxas de coparticipação (que
pode chegar em 50%) e leque reduzido de serviços, o consumidor pode
acabar tendo que desembolsar mais nos momentos de emergência.
Afinal, embora ele precise arcar com uma mensalidade para
utilizar os serviços, dois dos três planos em discussão não
contemplam exames e procedimentos de média e alta complexidade.
Nestes casos, o usuário teria que recorrer ao SUS. No terceiro
plano sugerido, os procedimentos são contemplados, mediante
pagamento de parte dos gastos pelo cliente.
“Os planos de saúde econômicos
propostos pelo governo são uma espécie de ‘propaganda enganosa’. A
pessoa contrata o plano, mas acaba no SUS”
Maria Inês Dolci
Vice-presidente da Proteste
Como reflexo, a proposta não resolveria a sobrecarga de usuários
no SUS, que continuaria como porta de escape das pessoas que
aderirem ao novo modelo e precisarem de serviços de média e alta
complexidade, afirmam especialistas.
“A partir do momento em que a cobertura dos novos planos
propostos não é irrestrita, obrigatoriamente a demanda vai ser
resolvida no SUS. O novo modelo não vai desafogar o sistema
público. Vai servir como mais um modelo de negócio empresarial para
resolver interesses privados”, afirma Hermann Tiesenhausen,
representante mineiro no Conselho Federal de Medicina (CFM).
O promotor Fabiano Moraes, coordenador do Grupo de Trabalho de
Planos de Saúde do Ministério Público Federal, tem opinião
semelhante. Segundo ele, os planos não serão suficientes para que o
governo reduza os gastos.
“O argumento do Ministério da Saúde é de que a crise fez com que
aumentasse a demanda do SUS e que seriam necessárias alternativas.
Pelo modelo proposto, os planos de saúde econômicos lidam com
atendimento de baixa complexidade, que são os de menor impacto na
saúde pública. O que custa mais alto para as contas públicas são
atendimentos de emergência, cirurgias e exames complexos, que não
são cobertos pela proposta”, critica.
Enrolação
Para o presidente do Sindicato dos Médicos de Minas Gerais
(Sinmed-MG), Fernando Mendonça, a criação dos planos econômicos não
passa de “enrolação do governo federal para tirar dele a
responsabilidade de atuar na saúde pública”.
Ele destaca que a forma de adesão dos médicos e o pagamento dos
profissionais ainda são uma incógnita. “Está tudo muito obscuro
ainda. Não sabemos como vai funcionar. O governo joga para os
médicos a responsabilidade, mas não explica como será a nossa
atuação”, lamenta. O Ministério da Saúde não se manifestou.
Convênios de baixo custo devem ‘explodir’
judicialização
Para que os planos econômicos propostos pelo governo federal
comecem a vigorar é necessário mudar a Lei 9656, que rege as ações
das operadoras, conforme a vice-presidente da Associação de Defesa
do Consumidor (Proteste), Maria Inês Dolci. Entre as alterações
previstas está a “flexibilização” dos reajustes das
mensalidades.
Isso significa que os gatilhos para aumento dos planos podem ser
maiores do que o determinado atualmente pela lei. “Neste caso, o
consumidor vai pagar muito, se levado em consideração que os planos
não oferecem uma cobertura completa”, critica o presidente do
Sindicato dos Médicos de Minas (Sinmed-MG), Fernando Mendonça.
Outra mudança é a revisão da coparticipação para 50% no
pagamento das consultas e ampliação do prazo mínimo para marcação
do atendimento. Hoje, os planos têm sete dias marcar consultas
básicas, por exemplo. “Quem trabalha na saúde pública sabe que
muitos pacientes não têm dinheiro para comprar nem o remédio. Se
for necessário pagar 50% da consulta, muitos até podem comprar o
plano, mas eles não terão dinheiro para usá-lo”, rechaça o
presidente do Sinmed.
Operadoras receosa
Além das críticas da classe médica, as próprias operadoras de saúde
estão receosas em criar um produto com preços populares. Elas
defendem que é preciso que a proposta do governo estabeleça com
clareza que o SUS assumirá os serviços de alta e média complexidade
dos pacientes, evitando a judicialização da questão.
É o que afirma José Fernando Rossi, da Associação Brasileira de
Medicina de Grupo em Minas Gerais (Abramge-MG), que representa
operadoras de saúde privada.
“É uma proposta interessante, mas está perigosa, ainda precisa
ser mais bem avaliada. O governo precisa analisá-la junto às
operadoras, senão a coisa vai ficar torta. O usuário precisa de uma
cobertura de algum evento hospitalar. Ele não tendo direito, o
primeiro lugar que vai é à Justiça”.
Além disso
No momento, a Agência Nacional de Saúde Complementar (ANS)
finaliza o processo de consultas públicas à proposta de criação dos
planos populares – qualquer interessado pode enviar propostas até o
dia 28 deste mês, no site da ANS.
A consulta acontece após um grupo de trabalho composto pelo
Ministério da Saúde, ANS e Confederação Nacional das Empresas de
Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e
Capitalização (CNseg) definir o escopo da nova modalidade de
planos.
O grupo reuniu representantes de mais de 20 instituições ligadas à
saúde suplementar, em seis reuniões presenciais. O Conselho Federal
de Medicina se recusou a participar da discussão por discordar da
proposta.
Em abril deste ano, entidades médicas, como o Conselho de
Medicina de São Paulo, e de defesa do consumidor, como a Proteste,
chegaram a lançar um manifesto contra a proposta. O grupo reclamou
de falta de transparência por parte do governo, já que teria havido
demora, inclusive, no encaminhamento das discussões para os
próprios envolvidos.
Para Fabiano Moraes, do grupo de trabalho de Planos de Saúde do
Ministério Público Federal, o modelo proposto pelo governo é
perigoso, a médio prazo, porque pode elevar os custos não só para o
usuário, como para as próprias operadoras de saúde e para o
governo.
“Com a lógica de coparticipação, as pessoas deixam de fazer os
exame preventivos e, depois, os problemas aparecem de formas mais
graves, exigindo tratamentos mais caros”, afirma.
O médico Hermann Tiesenhausen, membro do Conselheiro Federal de
Medicina (CFM), reforça a necessidade de o governo assumir de forma
mais efetiva o atendimento primário, ao invés de trabalhar com a
lógica de transferi-la para a iniciativa privada.
“O governo quer terceirizar uma situação que não consegue
resolver”, critica.