A expansão das clínicas médicas
privadas a preços populares é reflexo da naturalização da saúde
como mercadoria. Essa é uma das conclusões da tese de
doutorado Individualização social, assistência
médica privada e consumo na periferia de São
Paulo, do sociólogo Ricardo de Lima Jurca com
orientação da professora Aurea Maria Zollner Ianni, defendida em
abril deste ano na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP. De
acordo com o estudo, as novas clínicas “competem” com o Sistema
Único de Saúde (SUS), ao estimular que se supra no setor privado a
demanda por um serviço a que a população deveria ter acesso
gratuito — e essa competição não está sendo discutida.
A pesquisa foi focada na
expansão dessas clínicas em Heliópolis, comunidade em área de
classe média, na Zona Sul de São Paulo. Segundo o pesquisador, o
bairro foi escolhido devido à emergência do processo de
individualização e de mobilidade social das famílias, o que
possibilitou a entrada de novos profissionais na região
metropolitana, como os médicos do Dr.
Consulta e do Dr.
Alegria. Em pouco tempo, duas clínicas foram
instaladas na mesma avenida.
As clínicas, que prestam um
serviço de média complexidade além de acompanhamento ambulatorial,
cobram um valor entre R$ 70 a R$ 120 em suas consultas, que podem
ser pagas com cartão de crédito. Grande parte delas oferece exames
laboratoriais, clínicos e de imagens. Estão presentes em várias
regiões de São Paulo e da Grande São Paulo, além do litoral
paulista.
A entrada do pesquisador na
comunidade foi mediada por agentes comunitários de saúde e por
integrantes de movimentos sociais de associações de bairro. Foram
analisadas e discutidas cerca de 30 entrevistas, além de conversas
informais com profissionais da área da saúde, dirigentes sociais e
gerentes, tanto ligados ao sistema público quanto às clínicas
particulares, seguindo a cadeia de produção dos serviços de saúde
destinados às famílias pobres, que também compuseram o quadro
analítico da pesquisa.
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Saúde como mercadoria
A Constituição Federal de 1988
estabelece a saúde como dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de
doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Para
Ricardo de Lima, as novas clínicas são “um grão de areia” se
comparadas ao sistema público de saúde, mas não devem ser
ignoradas. O problema é não existir uma discussão sobre esses novos
grupos aparecendo e entrando no mercado da saúde. “Os princípios do
SUS que falam de participação social têm que voltar à pauta, para
discutir também essas clínicas”, comenta o sociólogo.
Na opinião do pesquisador,
talvez o ponto principal sejam os bens e serviços acessados e
consumidos pela população: “A questão hoje é que estamos saindo de
uma discussão da universalidade do direito à saúde e estamos
discutindo formas de cobrir a saúde para toda a população, e não
importa como isso seja feito, se vai ser pago ou não, o interesse
dessa cobertura universal, que não é o sistema universal que a
gente tem, é uma parceria entre público e privado que fique cada
vez mais oficializada para os governos”, afirma Lima.
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Um atendimento de impacto social
A proposta da clínica ao chegar
em Heliópolis era fazer um atendimento de “impacto social”. Mas com
lucro. Para Lima, o conceito de “empreendedorismo social” vem de
uma lógica perversa e repleta de contradições. Isso porque, com
base nas deficiências do SUS, é criado um sistema de atendimento
que visa lucrar, mas sempre passando a imagem para o usuário de que
a intenção é ajudá-lo: “É evidente que o objetivo é o lucro, eles
têm uma demanda fechada, critérios a cumprir para receber
investimento estrangeiro. A longo prazo isso traz retorno
financeiro, sem comprometer a visão de missão social”, afirma o
pesquisador.
Para ele, as clínicas são
“paliativas”, porque o atendimento fornecido é só o urgente. Isto
é, o paciente, que geralmente utiliza o SUS, gastaria uma grande
quantia de dinheiro se precisasse continuar com o acompanhamento na
clínica particular. Nesse aspecto, as novas clínicas se assemelham
aos antigos planos de saúde: quando surge uma demanda de alta
complexidade (um quadro de saúde mais delicado), elas não são
capazes de lidar. E o paciente retorna para o SUS.
Antes das clínicas serem
instaladas, é feita uma pesquisa para saber quais especialidades
mais faltam nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Ricardo de Lima
ressalta que existe uma dependência entre as novas clínicas e o
sistema público de saúde. Elas existem como um “complemento” e, sem
o SUS, não haveria demanda — que nesse caso, são os pacientes —
a ser disputada.
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“Uberização” da saúde
Há um processo paralelo ao
crescimento dessas clínicas: o acesso à elas por meio de celulares
e aplicativos. O paciente consegue pesquisar, através do celular,
vários tipos de clínicas e em qual terá a especialidade que ele
procura, com o preço mais viável para ele. Esse movimento foi
nomeado como “Uberização da saúde” pelo pesquisador, que explica
que isso vai além do custo das consultas e de um efeito da crise na
saúde, sendo mais um efeito de comportamento, complexo e ainda
pouco estudado.