Pacientes hepáticos extremamente graves devem continuar na fila
do transplante do fígado ou liberar a vaga para aqueles com mais
chances de sobrevida?
Um estudo do Hospital das Clínicas de São Paulo, o principal
centro transplantador do país, mostrou que estão sendo operados
doentes muito graves, com alto risco de morte ou complicações.
Ao mesmo tempo, outros pacientes graves, porém com mais chances
de recuperação, estão morrendo na fila. Foram avaliados dados de
543 pessoas operadas entre 2002 e 2011.
Com base nos resultados, publicados na revista científica "Liver
Transplantation", médicos propõem alterações nas diretrizes
nacionais para transplante de fígado, que limitariam a cirurgia em
casos muito graves.
O assunto, polêmico, será debatido hoje em evento médico em São
Paulo e entrará na pauta de discussões do sistema nacional de
transplante (leia texto ao lado).
Até 2006, prevalecia no país o critério cronológico para a
distribuição de órgãos, ou seja, os mais antigos tinham prioridade
na fila.
A partir de 2007, o critério passou a ser a gravidade, que é
avaliada por um modelo matemático (Meld) que se baseia em
resultados de exames laboratoriais e atribui pontos para cada
paciente.
Os números vão de 6 a 40. Quanto maior o valor, maior a
gravidade, menor o tempo de vida previsto para o doente e maior é a
prioridade de receber o órgão. São considerados casos graves
aqueles que têm índices acima de 16.
Segundo Luiz Augusto Carneiro D'Albuquerque, diretor da Divisão
de Transplantes de Órgãos do Aparelho Digestivo do Hospital das
Clínicas e um dos autores do artigo, 70% dos pacientes operados do
HC tem Meld acima de 36.
Isso resulta em um índice mais alto de retransplante e de
mortalidade. "Perdemos de 20% a 25% dos nossos pacientes até um ano
após o transplante."
Na Califórnia, segundo ele, a taxa de sobrevida é de 92%. "Mas os
pacientes chegam melhor ao centro transplantador. Aqui nossos
pacientes chegam muito debilitados."
Carneiro, que integra a câmara nacional de transplante de fígado,
defende que o país limite em 36 o Meld de candidatos a transplante
de fígado. "Hoje não há como fazer isso. A família [do paciente]
pressiona muito, as equipes têm um envolvimento com o doente. Mas o
órgão é um bem público e escasso. Se um recebe, outro fica
sem."
Para o médico Marcelo Bruno, que coordena a área de transplantes
de fígado no hospital Albert Einstein, é importante que haja um
estudo multicêntrico no país para avaliar a necessidade de um
limite máximo para o Meld.
Segundo ele, no Einstein não há diferença no índice de sobrevida
de pacientes com Meld acima de 30 em relação aos que têm números
inferiores. "Mas eles ficam mais tempo internados na UTI, precisam
de mais transfusão de sangue, de diálise e reinternam mais. É um
paciente que gera um custo maior."
Na opinião de Eduardo Antunes da Fonseca, que dirige as áreas de
transplantes de fígado nos hospitais A.C. Camargo e Sírio-Libanês,
é difícil estabelecer um limite de gravidade para não transplantar
um doente grave.
"Esbarra numa questão ética. É uma decisão complicada do ponto
de vista médico."
Segundo ele, antes de se pensar em mudança dos critérios do Meld, é
preciso avaliar se a alta taxa de mortalidade não está relacionada
à falta de estrutura dos hospitais para atender pacientes muito
graves.
"Talvez seja o caso de eleger instituições com melhores
condições de fazer transplante dos mais graves."